Como foi anunciado, em 2018, veremos a Turma da Mônica em carne e osso na telona duas vezes. Em um filme, os personagens clássicos, as crianças na faixa dos 6 a 7 anos de idade, irão dos quadrinhos para os cinemas; em outro, será a vez de a Turma da Mônica Jovem, os adolescentes em estilo mangá, fazerem o mesmo. Enquanto você lê este blog, há equipes trabalhando nos dois projetos.
A obra do brasileiro Maurício de Sousa repete, assim, uma jornada que vimos acontecer com a turma de bruxinhos da J.K. Rowling e a turma de super-heróis da DC Comics, entre outros. Trata-se da materialização - e, portanto, do fortalecimento - de modelos femininos fortes, o contraponto às princesas e às Barbies de costume. Pesquisadores vêm estudando o grande impacto, sobre as mulheres, de personagens femininos fortes como a Hermione e a Mulher Maravilha, impacto esse bastante ampliado quando elas foram incorporadas pelas atrizes Emma Watson e Gal Gadot.
O ponto similar comum entre Mônica, Hermione e Mulher Maravilha é a intenção de mobilizar. Sabemos que J.K. Rowling teve uma intenção de empoderamento feminino ao construir Hermione e outras personagens fortes. Ouvimos da atriz Gal Gadot que a dinâmica de casal igualitário entre a Mulher Maravilha e o personagem de Chris Pine foi proposital, para não haver paralelo com histórias de príncipe e princesa . E vemos a intenção de empoderamento feminino da Maurício de Sousa Produções (MSP) explicitada em 2016 no projeto Donas da Rua.
Além disso, Mônica é brasileira, e atravessa gerações, o que aumenta a identificação. Se Hermione e Mulher Maravilha já tiveram grande repercussão entre o público feminino aqui, imagine a menina do vestido vermelho.
Para entender melhor a intenção, fiz uma rápida entrevista com a Mônica Sousa, diretora-executiva da MSP, maior estúdio de animação da América Latina, com 400 funcionários diretos. Como a maioria sabe, ela é a inspiradora da dona do coelhinho azul.
Primeiro, preciso matar uma curiosidade: quanto de Mônica há na Mônica?
Quando criou a Mônica e a Magali, meu pai reproduziu os nossos comportamentos: minha irmã sempre foi meiga e comilona e eu sempre bravinha. Quando eu era pequena, realmente, se me tiravam do sério, eu dava coelhadas. O sansão existiu na vida real, meu pai comprou em uma feira, mas ele era amarelo.
Eu venho de uma família matriarcal, de mulheres muito fortes, que sempre foram respeitadas e tomavam as principais decisões, e não podia ser diferente comigo. Meu pai nunca me limitou por meu gênero. Eu não levava desaforo para casa, assim como a personagem, e nunca ouvi de meus pais que aquele não era um comportamento feminino, por exemplo. Mas meu pai sempre deixou bem claro que a personagem e eu éramos diferentes, para eu não ficar me achando mais forte do que era [risos].
Falando em empoderamento feminino, o fato de ser Turma da Mônica e não Turma do Cebolinha é interessante, não?
O curioso é que o quadrinho começou, na verdade, apenas com os personagens masculinos, e recebia o nome de "Tirinha do Cebolinha". O público pediu personagens femininos e aí meu pai se inspirou nas filhas. E a Mônica foi fazendo cada vez mais sucesso. Quando a revista foi criada, quiseram que se chamasse Turma da Mônica, e não Turma do Cebolinha. Ele trabalhava na sala de casa; crescemos vendo ele desenhar os personagens. Quando a Mônica apareceu pela primeira vez, em 1963, eu tinha 4 anos, mas não me dei conta que tinha servido de inspiração para a criação de um personagem. Só descobri ao acompanhá-lo no programa da Hebe Camargo, quando tinha entre 5 e 6 anos de idade [risos].
A gente conhece a Mônica criança e a Mônica jovem. Já vi matérias com o Maurício falando de planos para uma Mônica madura. Mas, por enquanto, você é a Mônica adulta, mulher. Qual é a história dessa Mônica número 3, executiva que toca a internacionalização?
Comecei minha carreira aos 18 anos como vendedora na Lojinha da Mônica, onde aprendi muito com o público e me encantei com o lado comercial. Não queria ter espaço na empresa apenas por ser filha, queria mostrar o meu valor como profissional. Trouxe bons contratos para a empresa e fui crescendo com isso: depois da lojinha, fui gerente de produto em alguns dos segmentos, depois assumi a direção do departamento comercial e, então, a direção-executiva.
E você está liderando dois desafios imensos, a da transformação digital e o da internacionalização, simbolizadas pela Mônica Toy, que está fazendo o maior sucesso no YouTube...
Isso mesmo. Hoje respondo pela área de licenciamento, que gera 90% do nosso faturamento - temos mais de 3.000 produtos com 150 empresas brasileiras -, por animação, por novos projetos e por digital. Por meio do digital, estamos nos internacionalizando mais, inclusive, crescendo em audiência nos Estados Unidos, México e Rússia.
Acredito que se minha xará Mônica amadurecesse ela seguiria igual, sem se limitar por seu gênero e servindo de exemplo para que as meninas realizem seus sonhos.
Estamos com muitas expectativas em relação ao live action! Nossa empresa conversa com as famílias há mais de 50 anos e o tempo todo ouvimos relatos de adultos que cresceram e perseguiram seus sonhos a partir de nossas histórias em quadrinhos e animações. Eu acredito que personagens de ficção são uma importante fonte de inspiração para as crianças - sejam heróis e heroínas, como a Mulher Maravilha, sejam outros personagens.
A Mônica e a turma têm muito a contribuir com a educação das crianças em geral, e especialmente ajudando-as a entender a importância do diálogo sobre o empoderamento das mulheres na sociedade.
Você pode compartilhar algum relato de empoderamento atribuído à Mônica?
Todos os relatos me emocionam e nos motivam a seguir com nosso trabalho, mas fiquei especialmente tocada com um depoimento de uma mulher que criou os filhos e, só depois, conseguiu se alfabetizar - lendo nossos quadrinhos. Poder ler lhe deu autonomia, algo que é fundamental.
Por que vocês criaram o projeto Donas da Rua?
Para contribuir ainda mais com o diálogo do empoderamento feminino. É mais que um projeto, é uma crença da Mauricio de Sousa Produções e minha em particular. Acreditamos que meninos e meninas podem aprender a conviver respeitosamente desde cedo. Nosso objetivo com o projeto é falar sobre a importância de um mundo com mais igualdade desde a infância.
A Mônica já nasceu empoderada e agora vocês querem que outras meninas nasçam assim?
Exato, o projeto se baseia em algo que sempre fez parte do nosso DNA, porque personagem Mônica já nasceu empoderada, desde quando apareceu pela primeira vez na Tirinha do Cebolinha. Mas, a partir da aproximação com a ONU Mulheres surgiu a ideia de trabalharmos a questão da igualdade de gêneros desde cedo, desfazendo estereótipos, mostrando exemplos de mulheres bem-sucedidas nas mais diferentes profissões, de mulheres que fizeram história. Acreditamos que disseminar projetos assim, envolvendo funcionários, clientes e parceiros, é uma forma de conseguirmos um mundo melhor.
Como vocês estão fazendo isso?
Uma das iniciativas foi criar uma plataforma para o projeto dentro do site da Turma da Mônica. Ali nós começamos, por exemplo, o "Donas da Rua da História", que nasceu após a divulgação de um estudo na revista Science, apontando que as meninas começam a se sentir inferiores e menos inteligentes que os meninos a partir dos 6 anos de idade. Isso tem uma influência muito grande na sociedade, porque elas crescem achando que os papéis e profissões importantes são só dos homens.
Então, o "Donas da Rua da História" veio retomar nomes de mulheres que se tornaram referências na história do mundo, para que meninas tenham exemplos femininos para se inspirarem e para que se sintam confiantes e capazes.
Na plataforma, as personagens da Turminha assumem identidades de personalidades femininas como Kathrine Switzer, primeira mulher a correr a Maratona de Boston; Dorina Nowill, criadora da Fundação para o Livro do Cego no Brasil;e a cientista Marie Curie, primeira pessoa que ganhou dois prêmios Nobel (em Física e Química), entre outras.
Outra linha de atuação são nossas ações voltadas para a participação da menina no esporte. Ao entrar na puberdade, muitas meninas deixam de praticar esportes e, quando meninas deixam o campinho, o mundo perde potenciais líderes. Todos perdemos. Por isso, realizamos o Soccer Camp em parceria com o Pelado Real F.C., que incentiva o futebol feminino. Como a inclusão é ponto crucial das ações, meninas que não podem pagar têm a inscrição custeada por financiamento coletivo. A segunda edição acontece agora em julho.
Mais iniciativas virão para atingir primeiramente as crianças, porque acreditamos que precisamos mudar as vidas desde o início. Mas queremos falar com adolescentes e adultos também, já que nossos personagens são queridos por várias gerações.
O projeto interfere de algum modo na produção dos quadrinhos?
Sim, sem dúvida. Por exemplo, nós realizamos uma oficina com a ONU Mulheres para nossos roteiristas e já estamos tendo mudanças nas histórias em quadrinhos, animações e filmes. Acreditamos que essa é uma atitude que vem de dentro.
E como é a equidade de gênero na empresa Mauricio de Sousa Produções?
É uma empresa que acredita na força da mulher. Hoje, temos equilíbrio entre gêneros nos cargos gerenciais, por exemplo; somos signatários da ONU Mulheres.
Alguns grupos feministas que citam a Mônica como um ícone do empoderamento feminino, mas outros dizem que, por ela ser apresentada como dentuça e gordinha, ou por ter características de liderança supostamente masculinas (liderança pela força), a Mônica distorce a causa. Como você avalia esses dois extremos de percepção?
Não podemos perder de vista que a Mônica e os outros personagens são crianças de na faixa dos 6 a 7 anos, e se comportam como tal. Mas temos evidências de que a personagem se transformou em ícone de força feminina no Brasil, sim, e que é vista por muitos como símbolo da luta das mulheres por oportunidades iguais a dos homens.
Quão necessário é o esforço coletivo em prol do empoderamento, em sua opinião? Neste blog mesmo vemos comentários - alguns até de mulheres - achando que a luta por equidade é um exagero...
Sou diretora-executiva da MSP, mas sei que ainda represento uma minoria no mundo corporativo. E é por esse e outros contextos que queremos cada vez mais atrelar a imagem da Mônica a de uma personagem empoderada e cheia de si.
Bacana, não é?! É claro que a influência positiva da Mônica vai depender sobre as meninas dependerá muito do roteiro dos filmes. Por exemplo, a pesquisadora Michele Fry diz que a força da Hermione vem dos fato de ela ser tão importante quanto o protagonista masculino; de não ser estereotipada (como são as mulheres nas novelas brasileiras, por exemplo), por não depender de personagens masculinos que a salvem, e por não ser idealizando - tendo tanto qualidades como defeitos.
A escritora Meredith Cherland diz que a pluralidade de atributos da Hermione (a gozadora, a prestativa , a capaz, a emocional, a inteligente) é que a tornam uma menina/mulher forte, pois mostra que dá para ser tudo isso sem perder a si mesma. Mas, como disse a Mônica Sousa, a MSP realizou uma oficina com a ONU Mulheres para seus roteiristas e já há mudanças nas histórias em quadrinhos, animações e filmes. Então tenho as melhores expectativas.
Disclaimer: Gosto tanto da Turma da Mônica que, já adulta, comprei para mim uma boneca da Mônica jovem.