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Encruzilhada fiscal

Por José Paulo Kupfer
Atualização:

Dada a insistência atribuída à obtenção de superávits fiscais primários como medida de boa condução da política econômica, pode causar surpresa a afirmação de que, dependendo do momento e das circunstâncias, nem sempre essa é uma verdade incontestável. Há ocasiões em que contrair dívidas, gastando mais do que se recebe, aparece como uma estratégia de sucesso. Há mesmo uma lista alentada de exemplos de países e pessoas que cresceram e se desenvolveram dessa maneira.

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Ninguém, contudo, nem os que relativizam, em certas circunstâncias, o esforço para a obtenção de superávits deixam de reconhecer que há limites para o endividamento e que o excessivo acúmulo de dívidas tem consequências negativas. Todos, portanto, deveriam se empenhar para administrar seus orçamentos com eficiente austeridade, mas, quando se trata de governos, esse empenho deve ser ainda mais necessário, visto estar em jogo o uso de recursos de toda a sociedade.

Tudo isso vem a propósito do projeto de lei enviado pelo governo Dilma ao Congresso, nesta terça-feira, que, numa canetada, acaba, na prática com a meta fiscal de 2014. A proposta elimina os limites existentes na lei orçamentária de 2014 para abatimento das desonerações fiscais e dos investimentos no PAC, no total dos gastos públicos. Com a aprovação do projeto, o abatimento máximo permitido saltaria dos R$ 67 bilhões em vigor para mais de R$ 150 bilhões, que é o acumulado projetado para o ano. Mesmo que o ano termine com o primeiro déficit primário desde o Plano Real -- uma possibilidade cada vez mais concreta --, o total dos abatimentos fará a mágica de transformá-lo em superávit.

Da decretação da falência do governo ao fracasso da política econômica, a "saída" encontrada para driblar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) recebeu todas as notas negativas imagináveis. Surgiram temores de que a norma se eternize, fazendo letra morta da LRF e levando à explosão da dívida pública. Com base nessa hipótese, alastrou-se o medo da perda do grau de investimento conferido pelas agências de classificação de riscos, em momento que não poderia ser pior, diante das previstas turbulências no cenário internacional, com a esperada retomada da alta de juros, na economia americana.

Embora todos esses temores devam ser levados em conta, não deixa de ser legítimo lançar um olhar mais benigno sobre a ação do governo. Esta poderia ser vista como uma "operação limpeza", que, a partir do reconhecimento da lambança fiscal dos últimos anos, fosse capaz de permitir à gestão fiscal recobrar a indispensável e perdida transparência. Com apoio nessa visão, seria possível acreditar que o espaço que se pretende abrir é amplo o suficiente para tirar esqueletos do armário, quitar atrasados e sobretudo eliminar as contorções contábeis que tumultuam e embaçam a condução da política fiscal. Livre dos truques a que repetidamente recorreu para cumprir, ainda que só formalmente, as metas fiscais, o novo governo da presidente Dilma poderia entrar em 2015 sem heranças malditas empurradas do exercício anterior.

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O governo se encontra numa encruzilhada fiscal. Poderia aproveitar a liberdade que pede agora ao Copngresso para restaurar a transparência fiscal e recuperar a credibilidade na condução da economia. Mas isso depende de um compromisso público e sem ambiguidades em relação à política fiscal daqui para frente. É pena que o conteúdo irrealista da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2015 -- projetando superávit primário de 2% do PIB, a partir de premissas pouco críveis, como crescimento de 3% e inflação de 5% --, assim como as declarações destes dias de ministros e da própria Dilma não colaborem para a confirmação da possibilidade mais otimista.

 

(texto publicado no O GLOBO da sexta-feira, 14/11/2014)

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