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Tomar empréstimos em dólares é como brincar de roleta russa

Onda de falências entre usinas de açúcar e álcool no Brasil é apenas um exemplo do que está acontecendo em vários países do mundo com a mudança da política de juros nos Estados Unidos

Por Economia & Negócios
Atualização:

Dólar: noticiário político deixa cotação instável no Brasil Foto: Estadão

Neil Irwin

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THE NEW YORK TIMES

Uma onda de falências entre os produtores de açúcar do Brasil foi impulsionada não apenas pela queda no preço do açúcar, mas também pelas dívidas em dólares, que se tornam mais caras a cada dia em comparação com a moeda brasileira.

Na Índia, uma das maiores empresas de geração de energia, Jaiprakash Power Ventures, que multiplicou em trinta vezes seu endividamento nos seis anos mais recentes, está agora vendendo instalações e negociando com os credores para evitar uma moratória.

Na China, o Kaisa Group, uma das maiores potências do mercado imobiliário, ameaça pagar apenas US$ 0,024 para cada dólar aos credores em meio a investigações de corrupção e uma renúncia em massa dos executivos, deixando incontáveis chineses que anseiam pela compra da casa própria encalhados no meio de um impasse multibilionário.

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Todas essas facetas são parte de uma mesma história: a acelerada valorização do dólar americano está afetando o mundo inteiro. Ao se fortalecer, a moeda ameaça as economias emergentes cujas empresas solicitaram empréstimos de trilhões denominados em dólares nos anos mais recentes.

A valorização do dólar foi impulsionada por decisões do Federal Reserve, banco central americano, que dará início a dois dias de reunião na terça feira para deliberação da política econômica. Na verdade, a expectativa em relação à reunião do Fed, na qual os banqueiros devem acenar com a proximidade de uma alta nos juros, elevou o dólar a patamares ainda mais altos nas duas semanas mais recentes.

Na prática, enquanto os responsáveis pelas políticas do Fed se reúnem em torno de uma mesa de mogno em Washington para tentar colocar a economia americana no rumo da prosperidade, suas ações provocam consequências desproporcionais e muitas vezes imprevisíveis no mundo, algo que decorre do papel central ocupado pelo dólar no sistema financeiro global.

Anos de uma política de juros baixos por parte do Fed incentivaram as empresas dessas economias em crescimento acelerado a emprestar em dólares, porque era mais fácil fazê-lo do que solicitar empréstimos em moeda local, como a rúpia indiana e o real brasileiro. E foi o que elas fizeram: já em setembro de 2014 havia fora dos EUA US$ 9,2 trilhões em empréstimos denominados em dólares, uma alta de 50% em relação a 2009, de acordo com o Banco de Compensações Internacionais.

Como disse o diretor do banco central indiano, Raghuram Rajam, no início do ano, em entrevista à Bloomberg Television, "Tomar empréstimos em dólares é como brincar de roleta russa, especialmente se o empréstimos é de curto prazo". Na maior parte das vezes tudo funciona bem, mas, quando o valor do dólar aumenta, as empresas subitamente percebem que precisam de mais dinheiro local para devolver os dólares que se valorizaram durante o empréstimo.

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E o dólar se valorizou bastante. Desde meados de 2013, quando o Fed anunciou que reduziria gradualmente sua política de "afrouxamento quantitativo", que consistia na compra de bilhões de dólares em obrigações usando dinheiro recém-criado - em outras palavras, que a torneira de dinheiro que vinha fluindo para o setor financeiro seria fechada - a moeda americana teve alta de 25% ante um conjunto de moedas internacionais habitualmente negociadas.

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"Agora que o dólar se fortaleceu e os juros vão subir, isso representa um risco e um desafio para muitos mercados emergentes, no sentido que suas dívidas se tornaram mais onerosas, um fardo mais pesado", disse Hung Tran, diretor administrativo e executivo do Instituto de Finanças Internacionais, uma associação de bancos globais. "Nos países emergentes, as autoridades têm o desafio de compreender até que ponto seu setor corporativo se encontra exposto."

Nos mercados emergentes, as empresas cuja principal atividade é a exportação podem estar bem. Afinal, sua receita é em dólares e, por isso, deve acompanhar a alta nas obrigações de serviço da dívida. Mas, para aquelas concentradas no mercado doméstico, como as incorporadoras imobiliárias ou as empresas de energia elétrica, o dólar mais caro pode tornar o pagamento dos encargos da dívida muito mais caro. O dinheiro que entra é numa moeda como a rúpia indiana e o ringgit da Malásia e, de uma hora para a outra, são necessárias muito mais rúpias para pagar as dívidas em dólares.

Hyun Song Shin, diretor de pesquisas do Banco de Compensações Internacionais, argumenta que a alta do dólar tem como efeito o aperto na oferta de dinheiro em toda a economia global. Uma empresa malaia negociando com uma empresa sul-coreana vai habitualmente realizar suas transações em dólares, não em ringgits nem wons. Agora os dólares terão sua disponibilidade limitada. Claramente, as decisões tomadas pela presidente do Fed, Janet L. Yellen, e seus colegas em Washington podem ter um grande efeito nas transações mesmo quando não há empresas americanas envolvidas.

Aos ouvidos de alguns economistas, isso cria ecos da crise que arrasou as economias do Leste Asiático no final dos anos 1990 e as economias latinoamericanas no início dos anos 2000. Nesses casos, também havia um descompasso cambial que fez as economias da Coreia do Sul, Indonésia, Tailândia e Argentina entrarem em colapso.

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Dessa vez, a maior diferença é que a dívida em moeda estrangeira é de empresas privadas, e não do governo. Devem haver em seguida uma série de recuperações judiciais, demissões e cortes de custos por parte das empresas individuais que solicitaram empréstimos demasiadamente agressivos. Um círculo viciosos de colapso econômico e medidas de austeridade do governo já é mais difícil de imaginar.

De fato, a alta no dólar e a queda nas moedas dos mercados emergentes têm efeitos contraditórios nas economias em questão. Enquanto as empresas que exageraram nos dólares emprestados enfrentam dificuldades, a queda nas moedas locais torna as exportações mais competitivas nos mercados globais. O Fundo Monetário Internacional projeta que as economias emergentes de todo o mundo crescerão 4,3% este ano, antes 2,4% para as economias avançadas.

Num abrangente discurso feito no segundo semestre do ano passado comentando os efeitos globais da política do Federal Reserve, Stanley Fischer, vice-presidente do Fed (e ex-diretor do banco central israelense, onde teve de lidar em primeira mão com poderosos efeitos decorrentes das ações do Fed), debateu os riscos enfrentados pelos mercados emergentes conforme a alta dos juros nos EUA levava à valorização da moeda americana.

"Não parece que o risco geral à estabilidade financeira global seja inesperadamente alto no momento, sendo muito provavelmente bastante inferiores ao risco geral anterior ao início da crise financeira", argumentou Fischer. "Independentemente disso, pode ser que algumas economias mais vulneráveis, incluindo aquelas que praticam políticas cambiais demasiadamente rígidas, considerem um pouco mais turbulento o caminho rumo à normalização."

Ele disse que isso torna ainda mais importante a comunicação clara das intenções do Fed. Com a reunião do banco central nessa semana e o dia do aperto monetário se aproximando cada vez mais nos EUA, a pergunta de trilhões de dólares que a economia global precisa responder é: quantas dessas empresas vão sobreviver à turbulência, e quantas mais irão quebrar? / Tradução de Augusto Calil

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