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A culpa nos engarrafamentos

Ainda que existam regras claras que, a priori, determinam a culpa na colisão de veículos, na prática, quem aparece como o culpado pelo acidente pode ser uma das vítimas

Por Antônio Penteado Mendonça
Atualização:

De quem é a culpa nos engarrafamentos de trânsito, quando vários veículos batem um na traseira do outro? Do primeiro, que é o único que não bate, ou do último, que encerra a fila, sendo o único que não é batido atrás? O tema é importante para o setor de seguros. A regra de trânsito diz que o culpado é quem bate atrás. Assim, se adotada a norma geral, o último da fila deveria ser o responsável pelo acidente. Mas, na prática, é realmente isso o que ocorre? Será que o último da fila é quem sempre dá causa ao evento? Ou será que o primeiro, o único que não bate em ninguém, é o responsável pelo engavetamento porque breca sem motivo aparente e sem aviso, fazendo que o veículo que vem atrás não consiga frear e bata nele, e o que vem atrás também bata, e o seguinte, sucessivamente, até o último da linha? Também pode acontecer de existirem dois responsáveis por se tratarem de dois acidentes que geram danos em cadeia, como se fossem apenas um engavetamento e não dois, que se unem pela dinâmica do movimento dos carros. Acontece uma colisão, dois ou três veículos batem um na traseira do outro, e um tempo depois um quarto veículo, ainda que tendo tempo para frear, não breca e bate no último da fila, dando início a outro acidente, com outro carro batendo na sua traseira, mas que, para quem vê de fora, depois dos veículos parados, forma um único engavetamento. Acidentes de trânsito são comuns e matam 60 mil pessoas por ano no Brasil. A maioria deles são colisões leves, normalmente envolvendo apenas dois veículos, que causam poucos danos e não costumam matar. Se nos acidentes mais simples determinar a culpa pode ser complicado, imagine num congestionamento envolvendo vários veículos, com condições adversas de visibilidade, chuva, pista molhada, buracos, falta de sinalização e todo o mais que pode ser elencado como realidade nacional. Assim, ainda que existam regras que a priori determinam a culpa, na prática as coisas podem acontecer de outro jeito. Aí, em princípio, quem aparece como o culpado pelo acidente pode ser uma das vítimas. Dizer que o primeiro da fila não tem culpa porque a culpa é de quem bate atrás é uma presunção que, na dinâmica das ruas, pode se transformar completamente, inclusive invertendo a culpa pelo acidente. Se um veículo dá sinal que vai entrar à esquerda e breca subitamente para virar à direita, não se pode dizer que a culpa pelo acidente foi do motorista que vinha atrás dele. Toda a sinalização, todas as indicações decorrentes de sua forma de dirigir apontavam para uma ação, que foi substituída, abruptamente, por outra completamente diferente. E se o carro que vinha trás bate nele, e outro que vinha atrás do segundo também bate, e um terceiro fecha a fila, batendo no segundo, nem por isso a culpa deixa de ser do primeiro veículo, que simplesmente não atentou para o fato de que dirigir é uma ação individual, mas dentro de um sistema coletivo, baseado na interação do tráfego, na velocidade dos veículos, na sinalização das ruas, no estado do calçamento e assim por diante. Da mesma forma, se uma fila está parada num cruzamento e um motorista, dirigindo e ao mesmo tempo enviando mensagem pelo celular, não percebe e colide violentamente com o carro na sua frente, atirando-o de encontro ao outro e dando causa a um engavetamento, a culpa é dele e não do primeiro, nem do segundo veículo, que estavam parados. Diferenças. Isto significa que não existem dois acidentes iguais. São no máximo semelhantes. Se as regras de trânsito determinam um procedimento absurdo, como velocidades máximas irrisórias, incompatíveis com trechos de certas rodovias, ainda assim elas devem ser acatadas porque são a norma. Mas se certas situações implicam em presunções de culpa a priori, a realidade não precisa obrigatoriamente comportar a aplicação da regra. Ao contrário, cada acidente tem suas peculiaridades que, em conjunto, podem levar ao entendimento de que a culpa, num caso concreto, é o oposto do proposto pela teoria.*É presidente da Academia Paulista de Letras, sócio da Penteado Mendonça Advocacia e comentarista da Rádio Estadão

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