A flexibilização do trabalho

Com uma legislação anacrônica, o País precisa modernizar as relações trabalhistas para estimular os investimentos, aumentar a produtividade e multiplicar os empregos

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Por José Fucs
9 min de leitura
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O empresário, David Neeleman, de 57 anos, fundador da Azul, sofreu um inesperado revés pouco antes de a empresa – hoje a terceira maior companhia aérea do País por número de passageiros – fazer o seu primeiro voo. Neeleman conta que, ao montar a Azul, em 2008, queria implantar um sistema inovador de atendimento aos clientes por telefone. Inspirado na experiência da Jet Blue, uma das principais companhias aéreas dos Estados Unidos, também fundada por ele, Neeleman pretendia criar um call center remoto, no qual os trabalhadores atenderiam as ligações da clientela em suas próprias casas. A proposta permitiria a mulheres com filhos pequenos, além de aposentados e estudantes, organizar a jornada de trabalho de acordo com a sua disponibilidade. Eles poderiam reforçar o orçamento familiar e Neeleman conseguiria reduzir os custos e, consequentemente, os preços das passagens. Seu plano, porém, não foi adiante. Não apenas porque o custo das ligações telefônicas e da internet no País inviabiliza o esquema, mas porque a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que regulamenta as relações trabalhistas, não contempla o trabalho a distância. “É uma pena, mas não conseguimos implantar o sistema no Brasil”, diz Neeleman.

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O caso de Neeleman é um exemplo emblemático de como a CLT atravanca o desenvolvimento dos negócios, os investimentos na produção, o aumento de produtividade e a geração de empregos. Dos pequenos empreendimentos aos grandes grupos empresariais, como a Azul, ninguém consegue escapar ileso de sua ingerência na gestão do pessoal. Criada por Getúlio Vargas em 1943 – sob inspiração da Carta Del Lavoro, a obra corporativista produzida pelo ditador italiano Benito Mussolini –, a CLT tornou-se uma camisa de força para o relacionamento entre o capital e os trabalhadores.

Apesar das mudanças que sofreu ao longo do tempo, a CLT passou praticamente ao largo das profundas transformações ocorridas nas relações de trabalho, na tecnologia e nas comunicações nos últimos 70 anos. Como nos primórdios do capitalismo brasileiro, quando foi elaborada, a CLT parte, ainda hoje, do princípio de que os trabalhadores são vítimas indefesas do capital, e os empresários, exploradores em potencial de seus empregados. “A legislação trabalhista foi importante na década de 40, quando foi criada, porque havia muita coisa a ser protegida que não estava na lei”, afirma o consultor José Pastore, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e presidente do Conselho de Emprego e Relações do Trabalho da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomércio-SP). “Hoje, boa parte da lei perdeu o sentido, porque as condições de trabalho, de tecnologia e de produção mudaram completamente.”

É provável que em nenhuma outra área da economia o intervencionismo do Estado se manifeste de forma tão vigorosa quanto no mundo do trabalho – e não faltam concorrentes para disputar a taça. Como nas velhas escrituras, cada detalhe está previsto na CLT: tempo de almoço e de descanso, jornada de trabalho, férias, trabalho aos domingos e até critérios de promoção. Há pouca, pouquíssima, margem de manobra para fazer algo diferente do que reza a CLT, mesmo por acordo entre as partes. “Do jeito que a legislação está hoje, o empregador tem medo de empregar, porque a CLT é um cipoal de normas, que gera muita insegurança jurídica”, diz Pastore. “Então, se ele puder robotizar a produção, vai robotizá-la.”

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Como se não bastassem as diretrizes draconianas impostas pela legislação, a Justiça do Trabalho complica ainda mais as coisas. Embora a Constituição de 1988 tenha reservado espaço para a negociação entre os empresários e os trabalhadores, a Justiça do Trabalho tem derrubado de forma recorrente os acordos coletivos firmados entre as partes que estão em desacordo com a CLT. Tudo o que não está alinhado com a letra fria da lei, mesmo que atenda aos interesses de empregadores e empregados, tende a ser visto como uma manobra espúria para livrar os patrões das obrigações trabalhistas. Não importa se a empresa está enfrentando uma queda dramática nas vendas e procurando fazer o possível para preservar os empregos de seus funcionários em meio à crise. “O empresário deve ter o direito de administrar o seu negócio sem sofrer intervenções do Ministério Público, da Justiça trabalhista e do Ministério do Trabalho”, afirma Almir Pazzianotto Pinto, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST).

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Nos últimos tempos, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem dado a sua contribuição para melhorar a situação, com decisões em favor da prevalência dos acordos coletivos sobre a CLT. Ainda assim, a Justiça trabalhista parece desconsiderá-los e continua a proferir sentenças que mantêm a prevalência da CLT sobre tudo o mais. A determinação com que a Justiça do Trabalho cultua a CLT se deve, segundo Pazzianotto, a uma “certa politização” ocorrida a partir da Constituição de 1988 e agravada durante os governos do PT. “No Brasil, ao contrário do que diz a Constituição, não há livre iniciativa”, diz. “A livre iniciativa está sob o controle rigoroso de pessoas que querem transformar o Brasil de capitalista em socialista, por meio de decisões judiciais.” Recentemente, o ministro do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Gilmar Mendes, fez uma avaliação na mesma direção. “O Tribunal Superior do Trabalho é, em sua maioria, formado por pessoal que poderiam integrar um tribunal da antiga União Soviética”, declarou. “A mim, parece (que tenha ocorrido) um certo aparelhamento da Justiça trabalhista e do próprio TST, por segmentos desse modelo sindical que se desenvolveu no País.”

De acordo com Pazzianotto, o viés ideológico das decisões da Justiça do Trabalho se manifesta também na forma de encaminhamento dos processos pelos juízes. Ele diz que a Justiça do Trabalho tende a privilegiar os depoimentos de testemunhas. As provas documentais, como o contrato de trabalho e o recibo de quitação, assinados pelo trabalhador ao entrar e sair do emprego, costumam ficar em segundo plano.

Com isso, cresce em ritmo acelerado a “judicialização” das relações de trabalho no País. “O empresário nunca sabe exatamente o que fazer para ficar livre dos riscos de sofrer um processo”, afirma Pazzianotto. “O empregado tem um custo enquanto trabalha e um custo depois que deixa o emprego – e não dá para fazer nenhuma previsão de quanto ele pode custar no final.” Essa incerteza, na visão de José Marcio Camargo, economista da Opus, uma empresa de gestão de recursos, e professor da PUC do Rio de Janeiro, gera um enorme incentivo para o empresário não pagar os direitos trabalhistas durante a relação de trabalho. “Se ele pode pagar depois, talvez até menos do que pagaria, acaba preferindo ganhar um ano ou dois de prazo”, afirma. “Além de ser um estímulo para o empresário não ter uma relação decente com o trabalhador, isso desincentiva o investimento, porque não dá para saber quanto custa investir, e gera poucos ganhos de produtividade, porque as empresas investem pouco em treinamento e capacitação profissional.” É natural, por tudo isso, que a reforma trabalhista tenha se tornado, ao lado da reforma da Previdência e do ajuste nas contas públicas, uma prioridade no País. Com o impeachment e a oportunidade que se abriu para o Brasil mudar de rumo, o momento não poderia ser mais adequado para promover a modernização da legislação trabalhista. Embora o governo tenha adiado para o segundo semestre de 2017 a apresentação de suas propostas, marcada inicialmente para o fim deste ano, o assunto não deve sair da agenda. O melhor seria discuti-lo já, como defende José Pastore. O próprio presidente do TST, Ives Gandra Martins Filho – uma exceção entre seus pares –, tem defendido a necessidade de realizar com urgência uma reforma trabalhista no País. “O Brasil tem pressa”, disse Martins Filho durante um debate sobre o tema realizado em setembro pelo Estado. “O cerne da controvérsia está entre uma legislação mais rígida, com uma intervenção maior do Estado no domínio econômico, ou uma lei mais flexível, que permita aos agentes sociais estabelecer as condições de trabalho.”

O problema é que, enquanto a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do Teto dos Gastos e a reforma da Previdência Social, que o governo promete encaminhar em breve ao Congresso, ainda estiverem “trancando” a pauta, é difícil imaginar que a reforma trabalhista receba a atenção que merece. “A gente está vivendo um período de incêndio e precisa resolver a questão fiscal”, afirma o economista André Rebelo, assessor de assuntos estratégicos da presidência da Fiesp, a entidade dos industriais de São Paulo, que está preparando um conjunto de propostas na área trabalhista para apresentar ao governo. “Só depois de combater o incêndio é que a gente verá qual parede vai reconstruir.”

O Congresso, desde já, está fazendo a sua parte. Hoje, há dois projetos em tramitação na Casa que são essenciais para aperfeiçoar a legislação. O projeto 4.962/2016, apresentado pelo deputado Julio Lopes (PP-RJ), reforça o papel dos acordos coletivos, já previstos na Constituição, e está alinhado ao entendimento que o STF tem dado à questão. Sem grandes mudanças na CLT, o projeto abre a possibilidade de as partes negociarem quase todos os seus penduricalhos, desde que o acordo coletivo não contrarie a Constituição e as normas de medicina e segurança do trabalho. O outro projeto, já aprovado pela Câmara Federal e aguardando análise no Senado, libera a terceirização de mão de obra, inclusive nas chamadas atividades-fim, ligadas ao negócio principal das empresas (veja o quadro).

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Embora não faltem dispositivos anacrônicos na CLT, há praticamente um consenso entre os envolvidos na discussão das mudanças de que é melhor concentrar os esforços em poucos itens, para facilitar a aprovação no Congresso, em vez de tentar implementar uma reforma profunda, que dificilmente sairá do papel. A prioridade é trabalhar para aprovar o projeto que fortalece o acordo coletivo e o que libera a terceirização. Com o fortalecimento do acordo coletivo, será possível negociar uma série de questões ligadas à jornada de trabalho, como o fracionamento das férias, o tempo de almoço e o trabalho aos domingos, com a intermediação dos sindicatos patronais e dos trabalhadores. Com a terceirização, a insegurança jurídica das empresas deverá diminuir e a produtividade, aumentar. “Com poucas mudanças, é possível promover uma revolução no mundo do trabalho no País”, diz José Marcio Camargo. “O que o governo tem de fazer é criar opções para o trabalhador e deixá-lo escolher as que ele prefere.”

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Como a reforma trabalhista tem impacto generalizado, há muita desinformação e contrainformação no ar. Uma declaração do ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, sobre a regulamentação do regime de 12 horas de trabalho com 36 horas de descanso, hoje amplamente adotada pelos profissionais de saúde, gerou muito ruído. Muita gente disse, provavelmente por má-fé, que o governo defendia a ampliação da jornada de 8 para 12 horas por dia. Mesmo com o governo garantindo que não vai mexer nos direitos dos trabalhadores – como 13.º salário, FGTS, férias, adicional de férias, descanso semanal remunerado e jornada de 44 horas semanais –, a “guerra de narrativas” em torno do assunto corre solta nas redes sociais. Vale tudo. Em seu site na internet, a CUT publicou uma nota cujo título dizia que “A reforma trabalhista pode acabar com o 13.º e as férias”. A tendência, à medida que a reforma trabalhista vá ganhando forma, é o conflito ideológico se acentuar.

Como os direitos dos trabalhadores não deverão ser afetados e o País enfrenta uma crise fiscal sem precedentes, é pouco provável que haja alívio para as empresas de obrigações trabalhistas e cunha fiscal incidente sobre o trabalho, que chegam a 102,43% do salário, segundo cálculos do professor Pastore. A reforma sindical também deve ficar para depois. Como na PEC dos gastos, que depende da reforma da Previdência para funcionar, a reforma trabalhista dependerá da reforma sindical para alcançar seus objetivos (veja os gráficos). Sem a adoção do pluralismo sindical e o fim do imposto sindical, que financia entidades patronais e de trabalhadores com contribuições compulsórias, o novo desenho que se pretende dar para as relações de trabalho no País não passará de uma quimera. Mesmo que a reforma sindical seja implementada em seguida, para não tumultuar o debate sobre as mudanças trabalhistas, a vez da reforma sindical terá de chegar.