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A ROTINA DOS ‘HOMENS-SETA’ COMO MÃO DE OBRA DO MERCADO IMOBILIÁRIO EM SP

Segurar uma placa pendurada no pescoço o dia inteiro, chova ou faça sol, rende em média R$ 40, mas o valor pode ter descontos se o fiscal observar distrações, conversas ou falta do uniforme; reportagem flagrou trabalho infantil

Por Vivian Codogno
Atualização:
A única exigência para o trabalho de homem-seta é a disposição dos candidatos Foto: Tiago Queiroz/Estadão

“Quero falar mais não, senhora. Tô com dor de cabeça”, se esquiva Juliano* ao dizer sua idade à reportagem. O garoto tem 16 e trabalha há pouco mais de um ano como homem-seta nas ruas de São Paulo. Sua função, assim como a de milhares de pessoas que cumprem o mesmo ofício aos finais de semana, é promover empreendimentos imobiliários segurando uma placa pendurada ao pescoço, que aponta para a direção do lançamento.

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No começo, o objeto parece leve. Em poucos minutos, fica desconfortável. Após algumas horas, é possível perceber as marcas na nuca de quem o segura. Juliano vem de Suzano, região metropolitana de São Paulo, indicado por uma amiga da escola, para trabalhar aos sábados e domingos na Rua do Paraíso, região central. Não diz o quanto recebe em troca nem o tempo que fica parado nas esquinas. Evita falar sobre o trabalho mas pede, com curiosidade, para ver a câmera do fotógrafo que acompanha a reportagem. Logo é alertado pelo “colega-seta” ao lado sobre a presença de fiscais no entorno, e volta a apontar sua placa para a Rua Nilo, onde há um lançamento de dois dormitórios, e silencia.

A poucas quadras, em frente ao Centro Cultural São Paulo, na Rua Vergueiro, Ed* ouve black music no fone de ouvido enquanto promove o mesmo empreendimento. Em seu primeiro dia de trabalho como homem-seta, o estudante de 14 anos acordou quando ainda estava escuro, tomou café da manhã e foi até o ponto de encontro no bairro Miguel Badra, também em Suzano, onde a van da empresa contratante passou para buscá-lo. Na mochila, colocou o que será seu almoço: uma garrafa de suco e um pacote de bolacha.

“É bom, já começo a ganhar um dinheirinho. Meus pais também gostam, pois eu já posso ajudar em casa”, diz o garoto sobre os R$ 40 que vai levar no fim do dia. Nasceu na Bahia, mas chegou em São Paulo muito pequeno, nem se lembra de lá. O bairro onde vive com os pais e os quatro irmãos fica distante da região central de São Paulo, por isso não conhecia a rua onde estava instalado. “Aqui é diferente, passa muito mais carros”, avalia.

A proximidade com o meio-dia fez com que Ed se lembrasse que aquele domingo era Dia dos Pais. “Perdi o almoço, mas não ligo muito para essas coisas.” Logo deixa escapar um movimento indicando que já sente dor nas costas. “Se deixar a placa pendurada, dói o pescoço. Tem que segurar, mas depois de um tempo, os braços doem. E tá calor, né? Mas tenho que ficar com a roupa deles”, explica Ed sobre o uniforme da incorporadora, que usa sobre a sua roupa no calor de 25º.

“Saio às 17h, eu acho. Ninguém me disse nada, o outro moleque ali da frente que me falou”, diz apontando com a cabeça para um outro homem-seta na esquina da frente. “Não precisa dar documento antes de vir trabalhar, acho que nem sabem a minha idade. Apenas me ofereci e vim”, explica Ed quando questionado sobre as exigências prévias para trabalhar como homem-seta. Tímido, seus olhos ficam pequenos pelo reflexo do sol no rosto.

Em muitos casos, não é permitido sentar e conversar com pessoas que não estejam trabalhando na mesma função Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Ilegal. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, Juliano e Ed não poderiam ser homens-seta. O Artigo 60 do documento assegura que jovens entre 14 e 16 anos trabalhem apenas sob a condição de aprendiz, supervisionado e com ligação a uma formação técnico-profissional. Além disso, o Decreto 648, que regulamenta a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), define o trabalho em logradouros públicos como um dos mais prejudiciais ao desenvolvimento psicossocial de crianças e adolescentes, o que, para a procuradora do Ministério Público do Trabalho de São Paulo (MPT-SP), Elisiane Santos, é o maior agravante.

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“Nas ruas, a criança ou adolescente está sujeita a interpéries, a riscos de acidentes, vulnerável a abusos, cooptação, aliciamento e a outras violações de direitos. O índice de acidentes de trabalho nas ruas é muito alto. Por lei, qualquer trabalho perigoso, noturno ou insalubre é vetado a menores de 18 anos”, define a procuradora.

Elisiane orienta que esse tipo de situação seja denunciada para o Ministério Público do Trabalho por meio do Disque 100 ou pelo site do MPT (https://peticionamento.prt2.mpt.mp.br/denuncia), ambas de forma sigilosa. “É importante que haja a maior quantidade de informações na denúncia, como local onde o trabalho acontece, nome do empreendimento e da construtora, horário, condições sob as quais a criança ou o adolescente estava submetido, idade aparente. Também é possível acionar o Conselho Tutelar, que tem uma atuação imediata de assistência”, explica.

Procurada, a incorporadora portuguesa Teixeira Vieira, responsável pelo lançamento Retrato Paulista, que contratou o trabalho de Juliano e Ed, não se pronunciou até o fechamento desta matéria.

*Nomes fictícios.

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