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'Bancos deveriam ter uma função limitada’

Economista propõe que sistema bancário seja repartido e que a atividade garantida pelo governo seja mínima

Por Lúcia Guimarães e NOVA YORK
Atualização:
‘Minha geração acreditava que o mercado ia se encarregar das coisas’, diz Martin Foto: Vice.com

A economia sempre ocupa lugar de destaque na campanha presidencial norte-americana. Mas, em 2016, foi o dinheiro que ocupou esse lugar. A surpreendente campanha do senador democrata Bernie Sanders foi apoiada no papel do dinheiro na política. E a campanha de Donald Trump, cuja plataforma aparenta ser mistério para o próprio candidato, fez farto uso de referências ao poder do dinheiro. Com a escolha do Senador Tim Kaine, do Estado da Virginia, para vice de Hillary Clinton, a discussão continua. Kaine, um centrista, é defensor do relaxamento da regulação de bancos, um assunto tabu para a esquerda nesta campanha presidencial incomum que, é, em parte, consequência do crash de 2008.

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Um best-seller britânico chega ao Brasil em boa hora: Dinheiro, Uma Biografia Não Autorizada, publicado pela Companhia das Letras,retraça a cronologia da invenção do dinheiro com elegância narrativa e fartura de história cultural. O autor, o economista Felix Martin, é um gestor de fundos, graduado em estudos clássicos e ex-funcionário do Banco Mundial. Martin argumenta que a compreensão equivocada sobre o que é o dinheiro e seu papel social impede os países de enfrentar crises como a do crash de 2008. O livro abre com a crônica da visita do aventureiro norte-americano William Furness à pequena ilha Yap, na Micronésia, em 1903. Furness descobriu que a moeda local – Fei – consistia em blocos de pedra gigantes. O enorme Fei de uma família tinha caído no mar durante uma viagem de navio e, anos depois, continuava a ser usado para trocas sem comprometer a confiança no crédito da família.

O relato de Furness foi publicado em 1910 e um jovem economista foi encarregado de fazer a resenha no então prestigiado Economic Journal. O nome dele era John Maynard Keynes. O economista que tanto influenciou a teoria monetária no último século ficou fascinado com a ideia de um povo isolado ter uma compreensão tão sofisticada da abstração representada pelo dinheiro.

Martin conversou com o Estado de sua casa em Londres.

Por que o sr. escolheu a história da ilha da Micronésia para ilustrar o engano sobre o que é o dinheiro? A narrativa dominante ocidental entende que o dinheiro é uma commodity. No começo, havia só escambo. Eu lhe entrego peixe, você me entrega pão. Depois, decidiu-se que era melhor haver um meio de troca que não fosse o objeto desejado, o dinheiro. Com o começo de empréstimos, inventou-se o crédito. Mais tarde, vieram os bancos, instituições baseadas em construir a superestrutura para a ideia do dinheiro. Essa é a história convencional, é como a maioria, inclusive economistas, pensa no dinheiro – como se ter dinheiro na carteira fosse o mesmo que possuir um carro. A outra tradição é quase o oposto: considera que a característica determinante é a relação de crédito, como na ilha da Micronésia. O dinheiro não é uma coisa, e sim um relacionamento entre pessoas e instituições. O que importa, nesta versão, é qual a unidade de valor e quem a decide.

Tomando o real como exemplo, qual a diferença entre essas duas versões? Na primeira versão, se você pergunta o que é um real, não faz muito sentido. Mas se você considera o real um incremento arbitrário de uma escala de valor arbitrária, quem decide, quem regula? A questão é importante hoje em sociedades financeiramente complexas, com relações de crédito em grande escala entre instituições e países. Se o dinheiro é só crédito, temos de determinar quanto crédito pode ser criado. Os sistemas monetários modernos são híbridos, parcialmente alimentados pelo governo ou um banco central, com metas de inflação e suprimento de moeda. Mas a vasta maioria do dinheiro circulando está em contas de bancos comerciais que são a outra parte do sistema híbrido, é onde a maior parte do dinheiro é criada numa economia. Uma das grandes tensões do sistema monetário moderno é sobre o quanto o controle indireto do governo funciona. Assim, temos ciclos de booms e crashes.

Parte da sua investigação no livro não é sobre o crescimento da desigualdade? Apenas uma parte. Hoje há uma suspeita crescente de que o sistema monetário conduz à distribuição desigual de riqueza. Uma resposta é que o sistema monetário pesa na redistribuição desigual ao tirar ênfase da atividade produtiva. Na ciência econômica convencional, um papel do sistema bancário não é criar dinheiro, mas selecionar investimentos pelo mérito produtivo e usar o suprimento de dinheiro existente.

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Por que o sr. defende uma repartição do sistema bancário? A ideia não é original. Foi defendida em Chicago, nos anos 30, e depois ressuscitada por Milton Friedman nos anos 1960. Bancos são instituições difíceis de regular. Os críticos dos crashes como o de 2008 argumentam que é preciso regular ainda mais. Como aconteceu na lei norte-americana Dodd-Frank, uma reação a 2008, as leis vão ficando mais longas e complicadas e a indústria, em seguida, inventa outro produto financeiro para escapar ao regulamento novo. Sou a favor de mudar a estrutura da indústria, regular o mínimo – o conceito de banco limitado forneceria serviços de pagamentos e os ativos teriam de ficar confinados a mecanismos sem risco e letras de curto prazo. A ideia desse tipo de banco é eliminar os problemas criados por uma mesma instituição - comportar ativos líquidos de um lado, com ativos ilíquidos em outras atividades. O que proponho oferece plena oportunidade de ganhar dinheiro com instituições que vendam outros produtos. Só defendo que o risco seja assumido por quem quer explorar outros produtos financeiros.

O livro cita o movimento Occupy. O que restou, a seu ver, daqueles protestos? Agora a situação está ainda mais interessante, com o Brexit, e com o referendo sobre a Constituição em outubro, na Itália. Creio que o Brexit teve menos a ver com questões explícitas da União Europeia. Foi um voto de protesto contra a perda de dignidade, uma chance de dizer à elite: ‘vão para o inferno’. Após 2008, houve um foco intenso no sistema financeiro. Agora, acho que há um movimento mais amplo. Mas é uma pena a perda de foco em finanças porque a questão não foi resolvida e é fundamental para a democracia. O grande desafio do sistema financeiro é a abstração numérica.

Qual a importância do dinheiro? Vamos perguntar, qual é o limite desejável para o papel do dinheiro e do sistema financeiro em regular a sociedade? Há 30, 40 anos, a noção dominante tem sido: quanto mais mercado, melhor. Fomos longe demais? Não tenho resposta e sei que não se elimina ideologia e política da vida das pessoas. Uma das minhas motivações neste livro é apontar a culpa da minha geração. Cheguei à universidade quando a União Soviética desmoronou. Fazíamos piada sobre a geração de 1968. Cometemos um erro tremendo. Nós nem nos preocupávamos com filiação partidária. Olhávamos para Tony Blair, para sua versão de social democracia e dizíamos, complacentes: o mercado vai se encarregar das coisas. O mercado, por si só, não realiza nada. A geração de 20 a 30 anos está hoje mais alerta. Não acredita na conversa de Francis Fukuyama sobre o fim da história.

O sr. está iniciando um novo fundo de investimentos no fim do ano? Sim, vai se chamar 1167, que é a data em que a república de Veneza se tornou o primeiro Estado moderno a tomar dinheiro emprestado de seus cidadãos, em outras palavras, quando inventaram o mercado de títulos do Tesouro. Sei que estou remando contra a corrente. A questão hoje é que os juros negativos são insustentáveis, são uma farsa. É absurdo operar fundos de pensão com juros negativos. O problema é estrutural e nossa solução é simples: os fundos de pensão de economias avançadas continuam a investir em letras do tesouro mas dos países emergentes como o Brasil ou o México. As economias que estão envelhecendo precisam investir nesses países. A alternativa ao que está aí, a meu ver, é a revolução.