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‘É bem difícil tocar reforma em governo de transição’

Economista lembra que a agenda de mudanças é complexa e impopular, e precisa passar por um amplo debate eleitoral

Foto do author Alexandre Calais
Por Alexandre Calais e Alexa Salomão
Atualização:
Risco. Lisboa diz ser cético sobre a possibilidade de se fazer reformas fora do debate eleitoral, sem uma grande coalizão Foto: CLAYTON DE SOUZA|ESTADAO

Para o economista Marcos Lisboa, presidente do Insper, o governo de Dilma Rousseff foi uma espécie de Enron das finanças públicas. Assim como a empresa americana forjou os balanços para simular lucros, a União maquiou as contas públicas. “Se isso é crime, eu deixo para os juristas avaliarem, mas eu considero grave”, diz. O grande problema é que essa falta de transparência contaminou todos os entes públicos. “Olhe os Estados. A gente precisa saber como é que eles chegaram à grave crise em que se encontram.” Para reverter o quadro, Lisboa defende a urgente realização de reformas. O seu temor, porém, é que seja inviável levá-las adiante num eventual governo de transição do PMDB: “Sou cético sobre a possibilidade de se fazer reformas fora do debate eleitoral.” O nome de Lisboa foi especulado como uma possibilidade para assumir o Ministério da Fazenda em um eventual governo Michel Temer, mas o economista faz questão de negar essa hipótese. Garante que não foi convidado e que não teria o perfil indicado para o posto, que, nesse momento, iria requerer alguém com muito mais trânsito político. A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu ao Estado.

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Há uma discussão hoje no País em relação às pedaladas e se a presidente Dilma Rousseff cometeu ou não crime de responsabilidade. Qual a sua opinião?

Em termos de contas públicas, o que houve foi grave. Acho até que o termo pedalada é inadequado. O que aconteceu foi uma maquiagem das contas públicas. Foram apresentados como resultado do orçamento, das despesas e receitas do governo federal, números que não correspondiam à realidade. Numa empresa privada, isso é crime. A gente ainda se lembra do caso da Enron. Era a maior empresa de energia do mundo. Maquiou o balanço, distribuiu dividendos com base em resultados que não existiram, transferiu dinheiro que não existia para o fundo de pensão dos funcionários e, um dia, o castelo de cartas caiu. Houve condenação das pessoas envolvidas. A maior empresa de auditoria do mundo, a Andersen, que auditava a Enron, nem existe mais. No caso do Brasil, não foi diferente. O governo anunciou resultados, distribuiu recursos e prometeu políticas com base em números que não correspondiam à realidade. Do meu ponto de vista, é grave. Se é crime ou não, eu deixo para os juristas avaliarem.

Há um debate jurídico paralelo.

Sim. A lei se aplica ao mandato, mas não se aplica à reeleição. Crime cometido antes, não vale. Mas tem outro aspecto que é crime: banco não pode emprestar para o acionista, nem para o executivo. Se eles usarem o cartão de crédito ou o cheque especial, se esquecerem de depositar e faltar, o Banco Central entra em ação. Isso é crime no mundo inteiro, em geral. É surpreendente que o Banco Central não tenha sido tão ativo com governo federal. Como não pegou uma movimentação de dezenas de bilhões de reais?

Qual o maior problema desse tipo de prática?

Uma série de mecanismos foi adotada para permitir a expansão do gasto público, sem a adequada transparência para a sociedade. Isso é grave porque a gente perde o controle sobre a solvência do Estado. Não sabemos a real situação das contas públicas. Vários truques foram usados para burlar o princípio legal da boa gestão. E isso não foi feito apenas no governo federal. Ocorreu em vários entes. Como está a Caixa Econômica Federal? O FI-FGTS? O BNDES? Não sabemos o tamanho do déficit. E olhe os Estados. Ao invés de transferir recursos públicos para os Estados, foi dado aval para a expansão de créditos, para o aumento do endividamento. A gente precisa saber como é que eles chegaram à grave crise em que estão. Como é que gastos com terceiros não entram no limite de gastos com pessoal? Como é que depósitos judiciais privados são usados para pagar contas de governos estaduais?

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Como o sr. qualifica a situação dos Estados?

Não gosto de usar palavras fortes, mas em muitos casos temos governos estaduais em colapso. Eles não conseguem pagar as contas. Agora estão com a inacreditável proposta de corrigir as dívidas estaduais com juros simples. Veja bem: a União pegou dinheiro da sociedade, pagando juros compostos, emprestou aos Estados para refinanciarem suas dívidas, e agora eles querem que a dívida seja corrigida por juros simples?

O sr. acredita que a proposta tem alguma chance de vingar?

Não sei. Estão dando as liminares. Essa discussão é inacreditável. A remuneração dos fundos de previdência, da caderneta de poupança, de todas as aplicações do País está em juros compostos. A União paga juros compostos. Então, que tal a dívida da União pagar juros simples? A União é o lastro de todas as aplicações do País. Como nós ficamos se uma coisa dessas passa? A degradação das contas se traduziu em medidas oportunistas que prejudicam a sociedade. Não se busca a solução real. O problema da maioria dos Estados não é dívida, é a despesa primária. A despesa da maioria dos Estados cresceu acima da inflação.

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O que é preciso fazer? Reformas? Cortar a folha?

É isso. Vamos pegar o governo do Rio de Janeiro, que está em grave crise. Entre 2009 e 2015, a sua folha de pagamento cresceu quase 9% acima da inflação. Se você aumenta a sua folha de pagamento, todo ano, durante seis anos, você vai ter problema. E lá tem de tudo: contratação de mais funcionários, mais terceirizados, a expansão da Previdência, aumentos salariais acima da inflação. Mas eles querem transferir, momentaneamente, o problema para a União. Daqui a três, quatro anos, o problema volta. A gente precisa de reformas estruturais para interromper a trajetória do gasto. Caso contrário, daqui a alguns anos, não vamos estar falando dos Estados, vamos discutir a solvência da União.

Quais são as reformas?

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A da Previdência é urgente. Nenhum País do mundo tem as regras generosas que o Brasil tem. Um homem se aposenta, por contribuição, em média com 55 anos. Uma mulher, com 53. Nós temos acúmulo de contribuições. Países com Estado de bem-estar social sofisticado não escolheram esse caminho. A idade mínima de aposentadoria é 65, 67 anos. Muitas vezes, para aposentadoria integral, 70 anos.

Mas essa medida não resolve o problema no curto prazo.

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Mas o problema no Brasil não só no curto prazo. A preocupação maior é como estabilizar a dívida no longo prazo. O País precisa de quatro reformas. Além de mexer na Previdência, precisamos fazer uma abertura comercial. Uma outra reforma é a tributária. É uma complexidade tal que nenhuma empresa tem certeza se está cumprindo a regra.

A receita do que precisa ser feito não é misteriosa, todo mundo sabe. O governo atual ignorou algumas reformas, mas tentou outras e não conseguiu. A pergunta é: dado o quadro que se delineia, um governo de transição tem condições de tocar adiante uma agenda de reformas tão complexa e, em certos casos, impopular?

Reformas envolvem interesses e perdas muito difíceis. Nenhuma das reformas pode implicar em mudanças traumáticas das regras do jogo. Em todos os casos, você precisa de um regime de transição. Por mais injustas e desajustadas que essas regras sejam, famílias e empresas tomaram decisões com base nas normas que estão aí. Vamos ter de discutir modelos para casa coisa, definir quem deve ser protegido e quem não deve, e será preciso um regime de transição para que todos possam se ajustar. Eu acho extremamente difícil que reformas como essas possam ser tomadas sem que tenham sido debatidas num processo eleitoral claro e transparente, o que naturalmente vai dividir a sociedade.

Num governo de transição isso é mais complicado?

Eu sou cético sobre a possibilidade de se fazer reformas tão profundas fora do debate eleitoral, sem uma grande coalizão que supere a polarização que está aí. Mas acho que podemos ter o benefício da dúvida. Esse debate deveria ter ocorrido em 2014. Todos os graves problemas que enfrentamos hoje já estavam presentes em 2014. Mas, na campanha, decidimos não debatê-los. O governo até negou que havia problema. E, vamos combinar: a oposição também preferiu não debater. Agora é a primeira vez que tem alguém no cenário político falando em sacrifício, assumindo que estamos em dificuldades e temos escolhas duras para fazer. Interrompemos o processo de negação e assumimos que os problemas são nossos, e não da crise externa.

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O desemprego não complica falar em reformas?

Sim – e por isso chegamos à quarta reforma que considero vital. Nós precisamos rever a nossa política social. Definir o foco: saúde e educação universais e políticas sociais focalizadas nos 40% mais pobres. Precisamos de políticas que sejam eficazes para os 40% mais pobres. O Brasil, nos últimos anos, criou uma profusão de políticas públicas, e a maioria não foi na área social. O País beneficiou setor A, setor B. A gente precisa definir metas, objetivos e critérios de avaliação – das metas e também dos objetivos – e saber se o dinheiro gasto alcança o resultado desejado.

Não alcança?

A relação entre quantidade de recursos gastos e a qualidade do resultado é frustrante. Países equivalentes ao Brasil, gastando três, quatro pontos a menos do PIB, têm os mesmos resultados. Alguma coisa acontece que o gasto não se traduz em benefícios sociais. Talvez a gente gaste nas coisas erradas, de gestão, mas o fato é que o Brasil tem uma profunda mudança a fazer aí.