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Governo prepara medida provisória que abre caminho para racionamento de energia

Documentos revelam a intenção de criar um comitê que terá o poder de adotar medidas como a redução obrigatória do consumo e a contratação emergencial de térmicas, que foram adotadas na crise de 2001

Foto do author Marlla Sabino
Por Marlla Sabino e Anne Warth
Atualização:

BRASÍLIA -  O governo tem nas mãos uma medida provisória que cria condições para adoção de um racionamento de energia. O Estadão/Broadcast teve acesso a documentos internos que revelam a intenção de criar um comitê de crise que terá o poder de adotar medidas como a redução obrigatória do consumo e a contratação emergencial de termoelétricas - mesmas medidas adotadas em 2001, quando a população e as empresas foram obrigadas a diminuir a carga em 20% para evitar o apagão.

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Publicamente, sempre que questionado, o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, tem negado o risco de um racionamento e assegurado o abastecimento.

A MP propõe a formação de um grupo que poderá mudar a vazão de hidrelétricas de forma imediata, sem aval de outros órgãos e entes que costumam ser consultados, entre eles Estados e municípios. Os custos das medidas serão pagos pelo consumidor, por meio de taxas na conta de luz, diz a proposta. O texto está sendo analisado em meio à pior crise hidrológica que o Brasil viveu nos últimos 91 anos, sem perspectiva de chuvas nos próximos meses.

Na crise de 2001,a população foi obrigada a reduzir o consumo de energia em 20%. Foto: Marcelo Min/Estadão

“Diante do contexto crítico e excepcional que o País vivencia, para garantir a efetividade das deliberações desse colegiado, com a tempestividade necessária, torna-se premente que essas se tornem excepcional e temporariamente determinativas, podendo prever, inclusive, o estabelecimento de programa prioritário de termeletricidade e de programa de racionalização compulsória do consumo de energia elétrica”, diz a minuta a qual o Estadão/Broadcast teve acesso.

O racionamento de energia vigorou entre 1.º de julho de 2001 e 19 de fevereiro de 2002, período durante o qual a população foi obrigada a reduzir o consumo em 20%. Quem não cumpria a meta pagava um adicional na conta de luz que variava de 50% a 200% e podia até mesmo ter a energia cortada por dias como forma de punição. A minuta da MP em análise pelo governo não faz referência a incentivos ou bônus para quem economizar além da meta a ser determinada pelo governo, como ocorreu no passado, nem define essa meta.

A MP deixa em aberto a possibilidade de que o encargo poderá ser usado, também, para pagar eventuais indenizações aos prejudicados pela não manutenção do uso múltiplo da água - como donos de pousadas na margem de represas que serão afetadas pelas deciões, por exemplo.

Com o racionamento, as indústrias também tiveram de reduzir a produção, e o Produto Interno Bruto (PIB), que havia crescido 4,4% em 2000, desacelerou para 1,4% em 2001.  Auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) apontou que o apagão de 2001 causou perdas de R$ 45,2 bilhões, pagas em sua maioria pelo consumidor, que teve que arcar com reajustes elevados nos anos seguintes.

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O desgaste político e econômico é apontado como uma das causas do fracasso do governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em fazer um sucessor. Nas eleições de 2002, José Serra foi derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva.

Pela minuta da MP, as usinas do Programa Prioritário de Termeletricidade, mesmo nome de um programa criado em 2000 na tentativa de evitar o racionamento decretado no ano seguinte, deverão ser contratadas em leilões como energia ou reserva de capacidade.

Para adotar essas e outras medidas, o governo vai criar a Câmara de Regras Operacionais Excepcionais para Usinas Hidrelétricas (CARE), grupo que poderá determinar mudanças imediatas na vazão desses empreendimentos.

“Destaca-se que o controle hidráulico de reservatórios é apenas um dos remédios para manter a segurança e continuidade do suprimento de energia elétrica ao longo do período seco de 2021”, acrescenta o documento.

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O comitê deverá promover a “concertação” de atores da administração pública com vistas à “articulação e à efetividade das ações” com a “tempestividade necessária” para garantir o abastecimento de energia.

Atualmente, quando há necessidade de se preservar água nos reservatórios das hidrelétricas, o primeiro passo é a elaboração de uma nota técnica por parte do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). Depois, é preciso aprovar a recomendação no âmbito do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE), órgão presidido pelo Ministério de Minas e Energia (MME).

Por fim, é preciso comunicar o dono do empreendimento, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e a Agência Nacional de Águas (ANA). Em alguns casos, as decisões levam dias e até semanas para serem implementadas, devido a impactos em reservatórios com usos múltiplos, como o abastecimento da população, manutenção de hidrovias e a preservação da fauna e da vegetação.

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A exemplo do que foi feito em situações de escassez hídrica que ocorreram no passado, prejuízos a geradores que tiverem que produzir menos energia para cumprir as determinações impostas pelo governo serão pagos pelo consumidor. Os custos para evitar o apagão serão pagos por meio de uma taxa - Encargos de Serviço do Sistema (ESS) - embutida na conta de luz de todos os consumidores.

O comitê, presidido pelo ministro de Minas e Energia, será formado ainda pelos ministros da Casa Civil, Desenvolvimento Regional, Meio Ambiente, Infraestrutura e Advocacia-Geral da União, e dirigentes da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), ANA, Ibama, ONS, Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e outros membros designados pelo governo.

Caberá ao grupo aprovar soluções “temporárias ou definitivas” para atenuar a crise hídrica. A ideia é articular as ações com Estados e municípios e até impor ações a governadores e prefeitos, que muitas vezes resistem a mudanças nas vazões que possam prejudicar regiões ou negócios.

A primeira reunião do comitê deverá ocorrer em até três dias úteis após a publicação da medida provisória, com vistas a priorizar o consumo de água por pessoas e animais, além do abastecimento de energia. A MP propõe ainda que o grupo seja extinto no último dia útil de 2021, 30 de dezembro, antes do início do ano em que o presidente Jair Bolsonaro pretende disputar a reeleição.

A MP está sendo preparada às vésperas da votação do texto que permite a privatização da Eletrobrás no Senado. A previsão é que o relator, senador Marcos Rogério (DEM-RO), apresente seu parecer para que o texto seja analisado na terça-feira, 15. Caso seja feita alguma alteração, a matéria terá que ser analisada pela segunda vez na Câmara. O prazo é apertado, já que a medida precisa ser aprovada pelo Congresso até o dia 22 ou perderá a validade.

Crise hídrica

Diante da escassez de chuvas nos últimos anos, o Brasil vive sua pior crise hidrológica já registrada, com níveis alarmantes nos reservatórios das principais usinas hidrelétricas. Desde outubro, o Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE) tem tomado ações para garantir o abastecimento de energia no País, que incluem o acionamento de usinas térmicas mais caras e a importação de energia da Argentina e do Uruguai.

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A situação levou o governo a emitir um alerta de emergência hídrica de junho a setembro em cinco Estados brasileiros - Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná, todos na bacia do Rio Paraná, onde a situação é mais grave. Nas últimas semanas, o CMSE determinou medidas para reter água nos reservatórios das hidrelétricas da região, de forma a evitar a liberação de volumes usados para outras atividades, como navegação em rios, pesca e captação de água potável.

A restrição deve atingir em cheio a hidrelétrica de Furnas, que fica no sul de Minas, uma das áreas de maior influência política do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Ele foi um dos principais defensores da mudança da cota mínima da represa e articulou a aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) com esse teor pela Assembleia Legislativa de Minas Gerais no fim do ano passado.

Com o apoio do governo à eleição de Pacheco no Senado, o ministro Bento Albuquerque ignorou o fato de que a PEC era flagrantemente inconstitucional, pois o rio atravessa outros Estados e, por isso, a competência é federal. O ministro foi pessoalmente à usina, onde se comprometeu a manter o nível do reservatório no imposto pela proposta.

Pacheco tem cobrado publicamente o cumprimento desse compromisso e afirmou que secar os reservatórios do sistema de Furnas é inaceitável. O Estadão/Broadcast apurou que o senador se movimenta para tentar aprovar medida semelhante para fixar o nível do reservatório de Furnas no Congresso Nacional.