HIDRELÉTRICA DE BELO MONTE DIVIDE ALDEIAS NO XINGU

De olho nos benefícios, comunidades indígenas, que eram 19 quando a obra começou, em 2010, já somam hoje 39

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Por , RENÉE PEREIRA, TEXTOS, FOTOS e ENVIADOS A ALTAMIRA (PA)
Na aldeia Terrawangã, casas de madeira serão substituídas por casas de alvenaria Foto: Tiago Queiroz/Estadão

 

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A aldeia Terrawãngã, na Volta Grande do Xingu, sempre esteve na linha de frente contra a construção da Hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. Primeiro, lutou contra a realização do leilão da megausina em 2010, depois defendeu a adoção de medidas para reduzir os impactos da obra e agora tenta lidar com as mudanças trazidas pelo empreendimento, algumas boas, outras nem tanto. A mais traumática foi a divisão da aldeia há pouco mais de um ano, seguindo um movimento de outras comunidades atingidas por Belo Monte. 

Em 2010, antes do início da obra, eram 19 aldeias de várias etnias, como arara, juruna, mundurucu, xikrin e caiapó. Hoje, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), são 39 aldeias. "Aos poucos, esses grupos estão passando por um processo de etnocídio. O povo indígena está sendo destruído", afirma o coordenador local do Cimi em Altamira (PA), José Cleanton. No passado, diz ele, já houve uma divisão natural por causa de espaço. Hoje, ela ocorre paralelamente à evolução das obras de Belo Monte, que será a terceira maior hidrelétrica do mundo, atrás de Três Gargantas (China) e Itaipu (Brasil/Paraguai).

O racha das tribos teve duas origens principais. Na aldeia Paquiçamba, por exemplo, a divisão ocorreu por divergência de opinião em relação ao projeto. O cacique, que durante anos repudiou a ideia de construção da usina, passou a apoiar publicamente o projeto. A posição desagradou à ala mais jovem da aldeia, que acusou o líder de estar iludido pelas promessas da concessionária Norte Energia, responsável pela hidrelétrica. O resultado foi uma nova aldeia com novo comando.

Outro catalisador das brigas internas foi o Plano Emergencial, desenhado pela Norte Energia, com base em critérios estabelecidos pela Fundação Nacional do Índio (Funai), diz Cleanton. Pelo programa, cada aldeia tinha direito a uma bolsa mensal de R$ 30 mil dada pela concessionária. Os indígenas não recebiam o dinheiro em espécie, mas tinham crédito no mercado para comprar produtos, como combustível, motores de barcos, sementes e comida.

"O plano durou 24 meses, enquanto a Funai não aprovava o PBA (Plano Básico Ambiental) de componente indígena", afirma o gerente de Estudos Indígenas da Norte Energia, Thomás Sottili. Mas foi o suficiente para dobrar o número de aldeias na região. Cleanton explica que a divisão dos recursos em forma de produtos acabou ficando desigual dentro das aldeias e provocou descontentamento e atrito entre os moradores. "Alguns ficavam com muito e outros sem nada." Foi aí que muitos se dividiram para conseguir ter acesso à bolsa.

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Na opinião de Josinei Arara, de 27 anos, um dos líderes da aldeia Terrawãngã, esse tipo de movimento enfraquece a luta do povo indígena. "Este não é um momento para nos dividirmos. Temos de nos unir para defender nossos direitos e nossa terra que será afetada por Belo Monte." Há cerca de um ano, o antigo cacique da aldeia, José Carlos Arara, um dos mais atuantes na guerra contra Belo Monte, surpreendeu a todos ao decidir deixar o comando da comunidade e montar uma nova aldeia, com seis famílias.

A tribo tem 28 famílias, sendo que a maioria da população local é mestiça Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Seca. Terrawãngã hoje é comandada pelo jovem Adalto Arara, de 22 anos, que segue os ensinamentos do pai adotivo Leoncio Ferreira Arara, o mais velho da aldeia. Aos 76 anos, Leoncio não aprova a divisão do seu povo e teme pelo futuro. Mesmo com a garantia dos engenheiros de que o volume de água no Xingu continuará igual, ele tem certeza que seu povo passará por maus bocados quando Belo Monte começar a funcionar. "Com menos água, como vamos pescar?", questiona ele.

Apesar de a memória falhar de vez em quando, Leoncio lembra detalhes da formação da aldeia, em 1976. O governo federal havia acabado de iniciar os estudos de Belo Monte, que naquela época se chamava Kararaô. Durante todo esse tempo, até a realização do leilão da usina, eles acreditavam ser fortes suficientes para barrar o empreendimento. Não conseguiram e agora vivem sob intensa transformação.

Hoje, a tribo tem 28 famílias, sendo a maioria mestiça - é comum encontrar crianças loiras com traços indígenas. Poucos sabem a língua dos ancestrais e muitos desconhecem a cultura, músicas e danças típicas, afirma a professora da aldeia Ageane Borges Sampaio. Apenas os mais novos ganham nomes indígenas, como é o caso do pequeno Iya Karawa, filho de Adalto Arara. Boa parte da comunidade mora em casas de madeira, algumas cobertas com palha e chão de terra batida. A maioria não tem banheiro nem água encanada.

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Mas esse cenário começa a mudar. Como parte do PBA indígena, a Norte Energia está construindo casas de alvenaria, com dois e três dormitórios, sala, cozinha e banheiro. As casas deverão ser entregues em fevereiro. Em Terrawãngã, as residências estão sendo construídas em círculo. Futuramente, diz Josinei Arara, a aldeia quer levantar uma grande oca para reuniões dos índios - uma forma de retomar os costumes que andam perdidos na aldeia.

No total, serão entregues às comunidade indígenas 700 casas, algumas de alvenaria e outras de madeira. Segundo Thomas Sottili, 400 delas já estão prontas. As novas casas terão água tratada e sistema de esgoto. A Norte Energia também terá de construir escola e posto de saúde em cada aldeia. A concessionária também doou 360 embarcações para os indígenas se locomoverem pelos rios - outras 50 estão previstas para ser entregues.

Apesar de a maioria não saber dirigir, eles também ganharam 42 veículos automotores, entre caminhonetes e caminhões pequenos. Os Araras da Volta Grande do Xingu receberam uma picape, mas já estão sem ela. Como ninguém da aldeia sabia dirigir, eles deixaram o carro na responsabilidade de um terceiro. Num acidente, o veículo teve perda total.

Em algumas aldeias, mais afastadas e de difícil acesso, a Norte Energia construiu pista de pouso. Também vai abrir uma estrada de 23 km na mata. "A concessionária tem batido em cima da ausência do Estado na reestruturação da educação, saúde e saneamento básico. É uma forma de convencer os índios a não interferir no projeto", diz Cleanton.

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