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Insensato subsídio

A maioria das economias ocidentais amortece o custo da contratação de empréstimos. Não é uma boa ideia

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Por Redação
Atualização:
Sem dedução de juros e sem redução de tributos, 8% das empresas do S&P 500 teriam fortes perdas Foto: Mike Segar/Reuters

No campeonato mundial de distorções econômicas, o que não falta são candidatas ao título. O subsídio aos combustíveis nos países emergentes é uma delas; a rede de proteção que os governos, sem dizer explicitamente, dispõem-se a estender para salvar da falência os grandes bancos, é outra. Mas o título de mais prejudicial de todos pertence a uma deformação que, embora não chame tanta atenção, disseminou-se de forma mais extensiva pelas vigas e pilares da economia. Apesar de o mundo estar atolado em dívidas, os governos permitem que os contribuintes deduzam o custo de seus empréstimos do imposto que eles têm a pagar, tornando o crédito mais barato e estimulando os tomadores a ampliar o endividamento.

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As deduções tributárias geradas pela contratação de empréstimos assumem duas formas principais. O pagamento de juros sobre o crédito imobiliário pode ser abatido - pelo menos até certo ponto - do imposto de renda da pessoa física nos EUA e em mais de uma dezena de países europeus, incluindo Bélgica, Itália, Holanda, Espanha, Suíça e a maioria dos países escandinavos. E, no mundo inteiro, as empresas podem deduzir do imposto sobre o lucro os juros que pagam aos detentores de seus títulos de dívida. Em contraste com isso, na maioria dos países são tributados os pagamentos de dividendos aos acionistas e os lucros que as empresas retêm para reinvestir em sua operação.

O consenso mundial de que as dívidas devem desfrutar de benefícios tributários é, em parte, fruto do acaso, em parte de decisões deliberadas. Seus proponentes originais não tinham como imaginar a escala que o endividamento alcançaria (hoje, as dívidas representam 286% do PIB mundial). A Grã-Bretanha tornou dedutíveis os juros pagos por empresas em 1853. Os Estados Unidos passaram a permitir a dedução parcial dessas despesas em 1894 - decisão que foi anulada pela Suprema Corte em 1895. Ainda nos Estados Unidos, uma mixórdia de leis, sentenças judiciais e emendas constitucionais restauraram parcialmente a dedução das despesas com juros entre 1909 e 1916. Um dos objetivos era ajudar o setor ferroviário, cujo endividamento atingira proporções elevadas. A dedução total das despesas com juros acabou sendo aprovada em 1918, como parte de um pacote de ajuda concedido a empresas que sofriam os efeitos da 1.ª Guerra Mundial. A possibilidade de abater os juros do crédito imobiliário veio em 1913, quando poucos americanos tinham acesso a esse tipo de financiamento. Foi só depois da 2.ª Guerra Mundial que se estabeleceu uma ligação entre esse benefício e o objetivo político de ajudar as famílias americanas a realizar o sonho da casa própria.

Hoje, as deduções tributárias geradas pelo pagamento de juros estão incrustadas na economia de todos os países, como se fizessem parte da ordem natural das coisas. Por um meio acidente da história, acabaram se tornando gigantescas. Há três formas de determinar sua dimensão. A primeira é observar que, pouco antes da eclosão da última crise financeira, seu custo representava uma renúncia fiscal de 2% a 5% do PIB ao ano nos países ricos. Em 2007, a Grã-Bretanha e a zona do euro gastaram mais subsidiando o endividamento de pessoas e empresas do que custeando o orçamento de seus aparatos de Defesa.

A segunda forma de mensurar essas deduções é atentar para o fato de que o valor delas é alto em relação ao valor dos ativos a que estão vinculadas. Nos Estados Unidos, seu valor presente (valor, descontada a inflação, dos benefícios fiscais em potencial concedidos aos tomadores de empréstimos) talvez corresponda a 14% do valor do estoque de imóveis residenciais e a 11% dos ativos das empresas.

Esses cálculos desconsideram a economia fiscal de 3% - equivalente ao retorno dos títulos de longo prazo do Tesouro americano - e excluem os ganhos auferidos por sociedades e instituições financeiras.

A terceira forma de visualizar o tamanho da distorção tributária é ver como ela afeta os cálculos feitos pelos tomadores de empréstimos. Em razão de sua dedução, os juros anuais pagos à instituição que financiou a aquisição de um imóvel no valor de US$ 1 milhão acabam recebendo um desconto de mais de 25%. As empresas americanas de grande porte em geral pagam sobre suas dívidas uma taxa de juros de 3% depois dos impostos, ao passo que o custo com ações (com base no retorno anual que os acionistas esperam obter) é de 8% ou mais. E cerca de metade dessa diferença é produto das deduções tributárias.

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Coronel Mostarda, com um subsídio. Os subsídios ao crédito não causaram a crise financeira. Muitos países haviam reduzido a tributação das empresas pouco antes da eclosão da crise, diminuindo o impacto dos benefícios fiscais. A maioria das multinacionais ostentava balanços sólidos. Nos Estados Unidos, as famílias mais ricas são as que mais se beneficiam do alívio tributário proporcionado pelo financiamento de um imóvel - e poucas delas ficaram inadimplentes.

Mas a distorção do sistema tributário global provavelmente agravou a crise, diz Simon Johnson, do Massachusetts Institute of Technology, estimulando o nível geral de endividamento e criando bolsões de iliquidez. A Holanda oferecia crédito imobiliário com os subsídios fiscais mais generosos do mundo, totalizando 2% do PIB ao ano, mais que o dobro do patamar observado nos Estados Unidos. O resultado foi um dos mais altos níveis de endividamento hipotecário do planeta, que ainda paira como uma ameaça sobre a economia holandesa. E muitos segmentos do universo corporativo se expuseram excessivamente ao risco. Aquisições alavancadas e empreendimentos imobiliários na área comercial foram viabilizados com um endividamento vertiginoso - barateado por deduções tributárias - e geraram prejuízos enormes. Nos últimos testes de estresse conduzidos pelo Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) e pelo Banco Central Europeu (BCE), o setor corporativo foi responsável por algo em torno de 30% a 40% da estimativa de perdas do sistema bancário.

Os bancos, como não poderia deixar de ser, foram os que tentaram levar mais vantagem, manipulando a legislação tributária com consequências desastrosas. A maioria emitiu títulos híbridos, que eram tratados como dívida pelo Fisco, mas como capital pelos crédulos órgãos reguladores. Quando veio a crise, esses papéis não funcionaram como um colchão para amortecer as perdas. Aproximadamente um terço do capital dos grandes bancos ocidentais era composto desses instrumentos. Se tivessem optado por emissões de ações, um número menor de bancos teria ficado a perigo, diz Ruud de Mooij, do Fundo Monetário Internacional (FMI). A consequente crise financeira deixou um fardo de endividamento que em grande medida ainda não foi equacionado.

Vou estar para sempre ao seu lado.

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Nada disso desmerece a importância das dívidas. Elas cumprem muitas funções econômicas úteis, permitindo que os recursos atravessem o tempo e as divisões sociais. Uma empresa que esteja sem dinheiro, mas que tenha boas perspectivas, pode levantar um financiamento hoje e pagá-lo amanhã. Uma pessoa rica, ou frugal, que disponha de mais dinheiro do que pretende gastar, pode fazer empréstimos àqueles cujas despesas são maiores que as receitas.

Os presidentes executivos gostam de contrair dívidas porque elas lhes permitem captar recursos sem abrir mão do controle de suas empresas - desde que se mantenham em dia com o cronograma de pagamentos. Os poupadores gostam de investir em títulos ou conceder empréstimos porque na maioria das vezes os pagamentos de juros geram um fluxo de rendimentos seguro. Se o tomador enfrenta dificuldades, os credores têm prioridade sobre seus ativos. Recorrendo-se a instrumentos de dívida, é possível dotar de regularidade fluxos de renda complexos. Do fluxo de caixa de estaleiros coreanos aos royalties da canção

Space Oddity

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, de David Bowie, zilhões de coisas já foram transformadas em títulos que oferecem cronogramas de pagamento previsíveis.

Tampouco há um limite lógico ao endividamento. A dívida de uma pessoa é o ativo de outra. Em termos globais, as dívidas devem se anular umas às outras. Teias mais densas de contratos de dívida são vistas como um sinal de sofisticação econômica, não de insolvência iminente. "O crédito é o ar vital do moderno sistema comercial", disse em 1834 o senador americano Daniel Webster. "Incentiva o trabalho, estimula as manufaturas, impulsiona o comércio em todos os mares." Há muito se diz aos países emergentes que o "aprofundamento financeiro" é fundamental para eles possam investir nas novas estradas e fábricas de que precisam.

Além de um certo ponto, porém, as dívidas parecem ter consequências negativas. O Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês), um clube que reúne todos os bancos centrais do mundo, avalia que o endividamento não deve ultrapassar 85% do PIB, no caso do crédito pessoal, e 90% do PIB, no caso de empresas não financeiras. A maioria dos países ricos desrespeita, ou está em vias de desrespeitar, ao menos um desses limites de endividamento.

Dívidas em excesso prejudicam o crescimento econômico de duas maneiras. No mundo desenvolvido, só uma pequena parcela das dívidas novas financia novos ativos produtivos, como fábricas ou máquinas; a maior parte serve apenas para reestruturar direitos sobre ativos existentes. Mas, para administrá-las, é preciso haver um grande setor financeiro, diz Stephen Cecchetti, atualmente professor da Brandeis International Business School, e ex-colaborador do BIS. Isso drena recursos do restante da economia.

O crescimento também sofre com as fragilidades criadas pelo endividamento excessivo. A necessidade de realizar pagamentos fixos ao longo do tempo deixa famílias e empresas mais expostas a eventuais retrações econômicas, que podem obrigá-las a cortar seus custos mais brusca e extensivamente, ou jogá-las nas malhas perversas da inadimplência. Os intermediários da economia - os bancos - criam uma segunda camada de problemas, uma vez que sua solvência é particularmente sensível a choques. Se operam com muitas dívidas de curto prazo, que precisam ser roladas, ficam vulneráveis a corridas aos depósitos.

Essas fragilidades põem as dívidas em contraste com outro instrumento financeiro: as ações ou participações acionárias. Ao contrário do que acontece com os juros, em períodos de dificuldades econômicas, os dividendos devidos aos acionistas podem ser reduzidos, sem que isso implique inadimplência. Além do mais, as ações não têm prazo de validade, de modo que não precisam ser refinanciadas. Os benefícios dessa flexibilidade ficaram claros durante a crise que atingiu as ações das empresas pontocom em 2000-2002. As perdas naquela ocasião chegaram a US$ 4 trilhões, o dobro do prejuízo de US$ 2 trilhões registrado pelos bancos globais em 2007-2010. Mas naquela altura o crédito não secou. Numa crise, enquanto as ações vergam, as dívidas rebentam. Contudo, nos países ricos as ações são um instrumento financeiro em declínio. O montante líquido de ações emitidas nos Estados Unidos vem encolhendo há dez anos. Por sua vez, entre 2007 e 2014, o endividamento do setor não financeiro - órgãos governamentais, famílias e empresas - como proporção do PIB cresceu em 41 das 47 maiores economias do planeta, diz Richard Dobbs, da consultoria McKinsey.

Não há regra que determine o nível de endividamento adequado em uma economia. O que mais se aproxima disso é a teoria de Modigliani e Miller. Ela diz que a estrutura de capital de uma empresa não pode alterar seu valor (supondo um mundo sem impostos). Lucro e risco operacionais permanecem inalterados, seja qual for a participação das dívidas, das ações ou de outros instrumentos no financiamento da companhia. A teoria não especifica níveis adequados para o endividamento ou para as emissões de ações, mas deixa claro que não se deve considerar uma forma de financiamento melhor que a outra. Em termos gerais, isso também vale para os orçamentos familiares.

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Ocorre que, no mundo real, é clara a preferência pelas dívidas. Qual a razão disso? As deduções tributárias são um motivo, mas não o único. O desequilíbrio também é reflexo do modo como o cérebro humano funciona. Os poupadores tendem a ver no fluxo de pagamentos fixos que receberão em troca de um empréstimo uma segurança que não existe. Quando os preços dos ativos (em especial dos imóveis) sobem, os tomadores são levados a acreditar que eles continuarão subindo e, por conta disso, resolvem ampliar seus lucros, contraindo dívidas para adquirir ainda mais ativos.

Fruto das deduções tributárias e da psicologia, o desequilíbrio em favor do crédito vem sendo amplificado por forças poderosas em ação na economia global, o que produziu mais aprofundamento financeiro, diz Adair Turner, ex-presidente do órgão regulador do setor financeiro britânico e autor do livro

Between Debt and The Devil

(

Entre as Dívidas e o Diabo

).

Consideremos, em primeiro lugar, os desequilíbrios globais. Países exportadores, como China, acumulam recursos e os investem no exterior. Em tese, poderiam comprar ações. Mas se tivesse investido suas reservas internacionais no mercado acionário dos EUA, a China seria hoje dona de cerca de um quinto do S&P 500 e, portanto, teria nas mãos o controle efetivo da América corporativa - situação que, em termos políticos, seria simplesmente insustentável. Em vista disso, os países exportadores optam por instrumentos mais seguros e menos controversos: os títulos de dívida. Do aumento observado entre 2004 e 2008 no volume de papéis americanos em mãos de investidores estrangeiros, 75% corresponde a esses títulos, a maior parte dos quais é composta de crédito imobiliário e papéis corporativos.

Desigualdades patrimoniais e de renda no interior de uma economia também amplificam o apelo das dívidas. Indivíduos ricos têm menos propensão a gastar que a maioria, de modo que quanto mais eles ganham, mais poupam. Esse dinheiro precisa ser reintroduzido no sistema, dando origem a mais instrumentos financeiros. As pessoas que precisam de capital em geral são indivíduos pobres, com renda estagnada. Na prática, o crédito é a única maneira de canalizar recursos para elas. Afinal, não dá comprar as ações de uma família. Títulos subprime, garantidos por imóveis, parecem seguros.

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Um terceiro e último catalizador é o próprio setor financeiro. Seu impulso natural é criar novos instrumentos para gerar mais negócios. E a preferência aí é clara: as dívidas são o ingrediente mágico que viabiliza as finanças modernas. Fluxos de caixa repletos de risco podem ser transformados em pagamentos aparentemente estáveis, facilitando a tarefa de tranquilizar - ou ludibriar - os clientes. Operações de arbitragem (em que se exploram diferenças de preço entre ativos similares) só são lucrativas quando alavancadas. Recorrendo-se a estratos de dívidas com diferentes níveis de prioridade em caso de inadimplência, o risco pode ser submetido a transformações quase infinitas.

O setor financeiro tem as próprias distorções, que estimulam as instituições a emitir dívidas sobre os próprios balanços. Ficou provado recentemente que os bancos - e, nos Estados Unidos, as agências de financiamento habitacional Fannie Mae e Freddie Mac - têm nos governos emprestadores de última instância. Essa garantia implícita torna os custos com a contratação de empréstimos artificialmente baixos. Não bastasse isso, os executivos do setor com frequência são remunerados com base em medidas de aferição de lucros inadequadas, como o retorno sobre o patrimônio, que a alavancagem acaba por maquiar. Tudo isso para dizer que o endividamento preservará parte de seu atrativo, mesmo na ausência de deduções tributárias.

Se for caminhar, tributarei seus pés.

O que aconteceria, se esses subsídios fossem abolidos? Seria uma medida revolucionária, pois as deduções estão inscritas no próprio comportamento de empresas e pessoas. Portanto, no curto prazo, à abolição se seguiria um momento de instabilidade. Mas as vantagens de longo prazo seriam enormes.

Começando pelo curto prazo. Os exemplos históricos não oferecem pistas claras. Na Grã-Bretanha, os benefícios fiscais associados ao crédito imobiliário contribuíram para uma forte alta nos preços dos imóveis residenciais na década de 80, mas sua eliminação, no ano de 2000, não impediu a formação de mais um bolha. A imensa complexidade do setor financeiro atual contribui para tornar o cenário turvo. Mas parece razoável supor que, num primeiro momento, a supressão do subsídio derrubaria os preços dos imóveis residenciais. Na Holanda, a queda foi de cerca de 10% quando, em 2012, eliminou-se a possibilidade de deduzir do imposto de renda as despesas com juros nos financiamentos imobiliários. Nos Estados Unidos, tendo em vista o valor dos subsídios em relação ao estoque de imóveis residenciais, o tamanho do recuo provavelmente seria similar. O impacto direto recairia sobre as famílias mais abastadas - quase 90% do valor das deduções possibilitadas pelo pagamento de juros hipotecários se concentram em famílias com renda anual superior a US$ 75 mil. Mas a queda nos preços dos imóveis residenciais seria problemática, uma vez que 17% das famílias americanas têm patrimônio negativo. O mesmo vale para a zona do euro, que tenta se livrar do perigo da deflação.

No caso do setor corporativo, as consequências dependeriam sobretudo da forma como a reforma fosse conduzida. A opção mais ortodoxa seria abolir toda tributação de uma só vez, aplicando em seu lugar, uma camada de impostos sobre os rendimentos que os indivíduos têm com seus investimentos em empresas. Isso eliminaria grande dose de complexidade do sistema e limitaria os incentivos à evasão fiscal e à prática de lobby pelas companhias. Mas deixar de tributar o setor corporativo seria politicamente temerário, já que no mundo inteiro inúmeros trabalhadores passam por um período de estagnação salarial.

Há duas abordagens alternativas. A primeira estabelece um equilíbrio entre crédito e ações "por baixo", criando para os acionistas deduções tributárias equivalentes às proporcionadas pelas despesas com juros. Nesse sistema, que atualmente vigora em alguns países europeus e é conhecido como "allowance for corporate equity" (ACE), o lucro das empresas é isento de tributação até atingir determinado patamar. O problema é que, desacompanhado de outras medidas, isso tende a produzir uma queda na arrecadação - a Bélgica adotou o ACE em 2006 e viu as receitas tributárias geradas pelo setor privado serem reduzidas à metade. O país introduziu recentemente um "imposto de equidade", a fim de recuperar parte da arrecadação.

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A segunda abordagem tenta equilibrar as coisas "por cima", tornando os juros tributáveis. Isso resultaria numa expansão brutal da base tributária, possibilitando uma redução da alíquota efetiva. Robert Pozen, da Harvard Business School calcula que se apenas dois terços dos gastos que as empresas têm fossem juros dedutíveis, seria possível reduzir a alíquota efetiva da pessoa jurídica de 35% para 25% nos Estados Unidos, sem que isso implicasse em queda na arrecadação. Usando os dados de Pozen, conclui-se que a abolição completa da dedução das despesas com juros possibilitaria baixar a alíquota para cerca de 15%.

No papel, o impacto de ambas as abordagens sobre as empresas deve ser reduzido. Se a receita tributária total gerada pelo setor privado permanecer inalterada, então o valor de cada empresa (dívidas mais ações) tampouco seria afetado. Os fluxos de caixa e perfis de risco subjacentes continuariam os mesmos. As empresas apenas rearranjariam o mix de endividamento e ações.

No mundo real, as coisas tenderiam a ser menos tranquilas. Haveria a possibilidade de que um sistema ACE aumentasse o valor das empresas, uma vez que a conta do imposto agregado poderia sofrer uma redução. A abordagem alternativa, com a tributação dos juros, teria efeitos ainda mais traumáticos, ainda que não para grandes empresas não financeiras. Se a dedução dos juros fosse abolida, e a alíquota tributária, reduzida, a fim de que a arrecadação se mantivesse constante, só 8% das empresas americanas que compõem o índice S&P 500 e 6% das 2 mil principais companhias globais sofreriam quedas nos lucros superiores a 20% (desconsiderando as empresas do setor financeiro).

Mas, longe dos mercados, a tributação dos juros prejudicaria muitas empresas que operam com margens estreitas ou que financiam com dívidas mais de 75% de seu balanço. Nos Estados Unidos, as vítimas mais óbvias seriam as prestadoras de serviços públicos, as operadoras de TV a cabo e as empresas que investem em imóveis comerciais. Muitas aquisições alavancadas enfrentariam problemas. O gestor de um fundo de private equity adverte: 'Seria como abrir a caixa de Pandora... Causaria dificuldades enormes e deixaria o mercado de pernas para o ar". É possível que houvesse uma avalanche de aberturas de capital e emissões de ações, provocando queda generalizada das bolsas em virtude dessa oferta adicional de papéis.

A tributação dos juros também prejudicaria setores da economia que têm acesso mais restrito aos mercados financeiros. Para empresas pequenas é difícil captar recursos. Os agricultores teriam de pagar juros mais elevados ao contratar empréstimos para aliviar a sazonalidade de suas receitas. Na Europa e na Ásia, é frequente a utilização de holdings endividadas para controlar impérios empresariais: algumas dessas estruturas fraquejariam.

O setor financeiro seria profundamente afetado. Imagine-se que a despesa dos bancos com o pagamento de juros sobre suas dívidas (mas não sobre seus depósitos) fosse tributada e a alíquota efetiva sofresse uma redução de um terço. Para o HSBC, que é um banco global, não haveria muitas mudanças nos lucros obtidos no ano passado. Mas isso é reflexo do fato de que o custo do seu endividamento está próximo de zero. Mais cedo ou mais tarde os bancos centrais elevarão os juros. Quando o custo do endividamento do HSBC passar para 5%, a mudança tributária eliminaria 25% dos seus lucros. O banco teria de aumentar as tarifas que cobra dos clientes.

Qualquer que fosse a reforma tributária adotada, sua implementação suscitaria inúmeras iniciativas de evasão fiscal. As instituições financeiras procurariam reclassificar suas dívidas, a fim de que fossem consideradas depósitos. A menos que os diversos países buscassem unificar seus códigos tributários, as empresas tentariam mudar seu status legal para não pagar impostos. Exemplo: se os juros fossem tributáveis, um número maior de companhias americanas poderia se converter em "entidades de passagem", onde a tributação incide no nível da pessoa física, e não da jurídica. E, a menos que a reforma fosse global, as multinacionais certamente tentariam emitir títulos em países que ainda oferecessem alívios tributários. Um vasto edifício de contratos financeiros internacionais seria reorganizado.

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Desmontando a máquina do juízo final.

No longo prazo, porém, as vantagens de uma reforma seriam imensas. A escalada no endividamento, que vem ocorrendo desde a virada do século poderia ser interrompida. Um sistema tributário neutro deixaria o balanço patrimonial do planeta com uma distribuição mais equilibrada entre dívidas e ações. Pareceria mais volátil - como um espartilho, as dívidas escondem as imperfeições da natureza -, mas no fundo seria mais flexível. Todos os pilares do sistema financeiro - tomadores, poupadores e intermediários financeiros - funcionariam de outra forma.

Atualmente, quatro quintos do estoque de ativos financeiros globais correspondem a dívidas ou depósitos. Esse mix se modificaria, com mais ações sendo emitidas e novos instrumentos de capital sendo inventados. Assistiríamos a uma onda de experimentações com financiamentos imobiliários com juros atrelados ao patrimônio (equity-linked mortgages), em que parte do risco associado às variações no preço do imóvel é assumido por credores ou outros investidores. Hoje esses produtos são penalizados pelo sistema tributário, diz Jason Furman, presidente do Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca. Seria possível o surgimento de "companhias locadoras", que emitiriam ações e investiriam no patrimônio das casas das pessoas.

Os poupadores se somariam a um moderno culto às ações. Atualmente, os fundos de previdência e de seguro têm obsessão pelos instrumentos de dívida, encorajados por reguladores que lhes pedem para conservar em carteira títulos seguros, seja qual for seu preço. Nesse admirável mundo novo, os poupadores teriam de se acostumar a investir em instrumentos financeiros patrimoniais, cujos preços sobem e descem. Os dividendos pagos pelas ações substituiriam os rendimentos com os juros pagos pelos títulos. Tais pagamentos poderiam ser reduzidos num momento de contração da economia - em 2008-2009, nos Estados Unidos, os dividendos pagos sofreram redução de 20%. Isso preveniria uma crise, mas prejudicaria aposentados cujo sustento dependesse do retorno de seus investimentos.

Os tomadores também teriam de mudar seus hábitos. A queda no preço dos imóveis ajudaria os mais jovens e pobres, mas eles talvez encontrassem dificuldades para contratar financiamentos imobiliários convencionais. Alugar seria uma alternativa - a obsessão do século 20 com a casa própria talvez arrefecesse um pouco. Franquear a terceiros a possibilidade de deter participações numa casa poderia ser outra. As empresas emitiriam mais ações. É difícil ver grandes desvantagens nisso. Uma cultura mais focada no capital poderia ajudar empresas jovens a se organizar e iniciar suas operações - talvez seja esse um dos motivos por que Marc Andressen, um investidor de capital de risco no Vale do Silício, apoia a reforma tributária.

Por fim, a ênfase do sistema financeiro teria de mudar para a organização de contratos acionários entre poupadores, empresas e famílias. Seria bem mais fácil fazer isso nos Estados Unidos, onde predominam os mercados de capital - fazer com que fundos mútuos comprem ações em vez de títulos é relativamente simples. Na Europa e na Ásia, onde os bancos sugam a maior parte da poupança e a transforma em crédito, o processo apresentaria mais dificuldades. Mas no mundo inteiro os bancos diminuiriam de tamanho.

Reformar a distorção do sistema tributário não é matéria de mobilização social. Protegida por interesses arraigados e poderosos, uma enorme teia de contratos foi urdida em torno de uma tecnicidade fiscal. A última vez que os americanos pensaram seriamente em fazer uma reforma foi em 1992 e, com exceção de ajustes pontuais implementados nos códigos tributários de Bélgica, Grã-Bretanha, Itália e Holanda, são raros os sinais de disposição reformista. E, no entanto, é possível que nunca volte a haver um momento tão bom para a mudança. Os juros estão baixos, os lucros, elevados e os preços dos imóveis residenciais, estáveis. Quando as taxas de juros saírem dos níveis abissais em que se encontram agora, as despesas com o pagamento de juros aumentarão, inflando o tamanho da distorção. O subsídio tributário sobre as dívidas colossais dos países ricos tornará a atingir os níveis observados pouco antes da crise de 2008. E a máquina do endividamento sofrerá novo superaquecimento.

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© 2015 THE ECONOMIST, TRADUZIDO POR ALEXANDRE HUBNER, PUBLICADO SOB LICENÇA. O ARTIGO ORIGINAL, EM INGLÊS, PODE SER ENCONTRADO EM WWW.THEECONOMIST.COM

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