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Muito mais do que algo de podre

Por Marcelo de Paiva Abreu
Atualização:

Marcellus, em Hamlet, de Shakespeare, é personagem menor, faz parte da guarda no castelo de Elsinore. E, no entanto, é dele uma das mais famosas frases shakespearianas: "Há algo de podre no reino da Dinamarca". Foi como reagiu à revelação de que o pai de Hamlet havia sido assassinado pelo irmão Cláudio, que, ao casar-se com a sua viúva, havia privado Hamlet do trono da Dinamarca. Embora com enredo mais simples, a situação do Brasil de hoje justifica a repetição da frase de Marcellus. Não apenas a situação é calamitosa, mas tende ao agravamento, em meio às protelações do governo. Um artigo curto é insuficiente para esgotar o rol de dificuldades que poderia justificar tal diagnóstico. Mas vale a menção às políticas referentes a petróleo e energia elétrica, às estripulias fiscais e à controvérsia sobre a autonomia do Banco Central, para citar uns poucos casos. Tudo coroado pelo lamentável discurso recente da presidente na ONU. O adiamento de aumentos de preços de derivados de petróleo vem causando danos substanciais às contas da Petrobrás. A política de conteúdo nacional mínimo excessivamente ambiciosa tem onerado despropositadamente o custo dos seus investimentos e atrasado o seu cronograma. Isso sem levar em conta os indícios de corrupção que, por exemplo, levaram à triplicação dos custos de investimento da Refinaria Abreu e Lima. A disseminação de corrupção na maior empresa estatal brasileira é de difícil conciliação com as reiteradas afirmações da presidente da República quanto às vantagens de um modelo econômico que privilegie o papel do Estado. As trapalhadas que afetaram a ação pública no setor elétrico são bem conhecidas. Investimentos foram sistematicamente protelados. Num quadro de ameaça de racionamento, tratou-se de estimular o consumo. O ajuste represado de tarifas afetará de forma significativa a inflação de 2015. E o racionamento ainda paira como ameaça, a despeito de negativas veementes do governo. A credibilidade do governo, já abalada pela persistente manipulação das contas públicas e da obediência do Banco Central às diretivas do Executivo, sofreu impacto adicional com a explicitação da posição da presidente sobre a autonomia do Banco Central. Conceder autonomia ao Banco Central seria capitular ante o interesse dos banqueiros. Assistiu-se aí à queda da máscara em meio a comentários que revelam obtusidade até então bem ou mal disfarçada. E, a despeito de tudo isso, em 2014 o PIB per capita cairá quase 1%. Essa sequência de vexames foi coroada espetacularmente pelo discurso da presidente em Nova York na abertura da assembleia das Nações Unidas na semana passada. O discurso foi lamentável. Dilma Rousseff não entendeu que ocupava a tribuna como chefe de Estado, e não como candidata presidencial. É impossível justificar a repetição naquela tribuna do rosário de omissões, meias-verdades e meias mentiras que compõem o seu discurso eleitoral. Enquanto esta parte do discurso foi ridícula, o que se seguiu beirou o catastrófico. Na esteira da decisão norte-americana de bombardear objetivos do Estado Islâmico na Síria, a presidente insistiu em que o uso da força é incapaz de eliminar as causas profundas dos conflitos. Foi uma intervenção de ingenuidade quase infantil, em vista da impossibilidade de negociar com o adversário. E marcou mais um episódio de regressão ao primitivismo antiamericano já perceptível em outras manifestações do governo no passado. Tanto no caso da controvérsia sobre a autonomia do Banco Central quanto do estapafúrdio discurso na ONU os danos são óbvios e de difícil reversão. Aumentou a desconfiança dos mercados financeiros em relação à gestão econômica brasileira. O anseio brasileiro de emplacar um lugar no Conselho de Segurança da ONU ficou bem mais remoto. Não é o reino da Dinamarca, é bem pior. *Marcelo de Paiva Abreu é doutor em Economia pela Universidade de Cambridge e professor titular no departamento de Economia da Puc-Rio 

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