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Na crise, a disputa pelos ‘quase vencidos’

Consumidor lota mercados por produtos perto do vencimento, com mais de 50% de desconto

Foto do author Márcia De Chiara
Por Márcia De Chiara e Renato Jakitas
Atualização:

O volume alto e o ritmo frenético da música ambiente parecem comandar o movimento das vendas do Mega Mix, um mercado na Vila Sabrina, na zona norte de São Paulo, que só vende produtos com prazo de validade próximo do fim. Lá, enquanto levas de clientes se acotovelam nos corredores apertados, os valores são dinâmicos: conforme o dia passa, aumenta o risco de encalhe, o que faz o preço cair. Depois das lojas de R$ 1,99 e dos atacarejos, a crise impulsionou esse tipo de varejo, conhecido como “vencidinhos”, especializado em pechinchas.

A alguns quilômetros do Mega Mix, o quadro se repete no Mercado Vanessa, no Jardim Santo Elias, zona oeste. “Aqui é uma bolsa de valores: de manhã o preço é um e, à tarde, outro”, conta Dayana Ferraz Primarano. Ela, que administra uma das três lojas da família, todas voltadas para esse nicho, negocia com a indústria diariamente. “Cheguei a comprar leite a dois dias de expirar a validade e vendi o litro a R$ 1.” Nesse caso, o desconto foi de mais de 50% para o consumidor em relação ao preço normal.

Vovó Zuzu é a mais antiga no ramo, loja está aberta há 16 anos no centro de São Paulo Foto: Hélvio Romero/Estadão

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O orçamento apertado nos últimos anos e agora o desemprego elevado que persiste ajudam a explicar a maior popularidade desse tipo de comércio, onde os descontos podem chegar a 90%. Há lojas de médio e de pequeno portes que chegam a atender cinco mil pessoas mesmo durante a semana. No sábado, o dia mais forte do varejo, esse número sobe para 10 mil. 

Esses mercados comercializam, principalmente, marcas líderes de itens refrigerados e congelados, como iogurte, pratos prontos, salsicha, mortadela e presunto de Parma. É possível achar 300 gramas de queijo brie, por exemplo, a R$ 2,50.

Sem registro. Institutos de pesquisa e associações do setor não têm dados sobre quanto as lojas “Fifo” movimentam. Assim, elas são conhecidas pela indústria, em alusão ao método de controle do estoque que leva em conta que o primeiro produto que entra no depósito, isto é, o mais antigo, também é o primeiro que sai – “first in, first out”. A maioria dos itens vendidos nessas lojas, normalmente localizadas fora da área de influência das grandes redes de supermercados, é o encalhe da indústria. A sobra de mercadorias nos depósitos das fábricas ocorre porque os fabricantes erraram a mão nas quantidades produzidas ou porque determinado item não emplacou. 

Na mais antiga loja do ramo, a Vovó Zuzu, há 16 anos no Parque Dom Pedro II, região central, a procura aumentou tanto nos últimos dois anos que os donos precisaram ampliar o espaço em 30% – hoje, ela ocupa 1,5 mil metros quadrados – e estender o horário das 6h até a meia-noite. “É cheio de gente o tempo todo”, conta o gerente Vanderli Santana. “No ano passado, inauguramos um corredor de 30 metros só para os iogurtes e os congelados, que são nosso carro-chefe, e ampliamos o horário de funcionamento para o Natal. Acabou que o espaço já está pequeno de novo e não conseguimos mais retornar ao horário das 8h às 22h.”

Calibragem. O segredo desse tipo de negócio está em calibrar o tamanho do desconto com o prazo de validade para vender rapidamente grandes quantidades e zerar os estoques. Na Vovó Zuzu, dos 300 funcionários, 30 têm a tarefa única de ficar de olho nas prateleiras e acompanhar o prazo de validade. 

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Algumas dessas lojas só vendem à vista, pois têm prazo curto, no máximo de uma semana, para pagar a indústria. Segundo Ancelmo Santos do Nascimento, gerente do Mega Mix, o lucro é pequeno, mas o ganho está no volume. “O produto chega hoje, a gente trabalha com 5% de margem. Não vendeu, no outro dia cai para 3%. Se demorou na gôndola, a ordem é liquidar, vender mesmo com prejuízo para não jogar no lixo”, reforça Santana, da Vovó Zuzu. 

Para Eduardo Terra, presidente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo, a chave desse negócio é a agilidade. “Esse é um varejo de alto risco, no qual a perda sempre é iminente se o produto encalhar. Esse tipo de loja é uma tendência mundial”, diz. Aqui, ela ganha dia a dia novos consumidores por causa da crise e também porque no Brasil a quantidade de produtos com prazo de validade é maior do que em outros países.

Terra explica que esse formato de loja é favorável para a indústria: reduz as perdas dos fabricantes com o encalhe e não canibaliza o seu público-alvo. “Essas lojas vendem para os consumidores das classes de menor renda que não comprariam esses itens.” 

A Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia) informou, por meio de nota, que não monitora dados sobre a venda de produtos com validade próxima ao vencimento. 

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Os maiores fabricantes do País não detalham o funcionamento desse mercado. Procuradas, Nestlé, BRF e J. Macêdo confirmam que comercializam diretamente com essas lojas, mas não atribuem a prática à necessidade de reduzir estoques. As empresas não concederam entrevista. A Lala, dona da marca Vigor, disse que não localizou um porta-voz para tratar do assunto. A JBS não retornou os pedidos de entrevista.

Revenda. Neusa e Aline Mendes, mãe e filha, vão a uma loja especializada em produtos próximos do vencimento e enchem o carrinho com iogurtes para revender em formato de combo, embalado com saco plástico, de porta em porta na cidade de Guarulhos, na Grande São Paulo. “Vendemos 100 kits por mês. Compramos por R$ 25, R$ 30 e revendemos a R$ 50”, diz Neusa.

Aline e Neusa (D) compram para revender Foto: Hélvio Romero/Estadão

As empresárias contam que, antes, negociavam diretamente com as marcas, indo de fábrica a fábrica, mas o preço final ficava maior até 10%. “Quando a gente coloca no papel, esses 10% são a gordura para abastecer o carro e custear as entregas”, conta Neusa. Segundo elas, o segredo é conseguir garimpar produtos com o prazo ideal de vencimento. “Nosso cliente consome tudo em uma semana. Então, pra gente, com até 15 dias para vencer, já dá para comprar e revender.”

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Congelado. A dona de casa Rosenilda Silva se considera uma espécie de caçadora de produtos próximos do vencimento. Ex-funcionária de uma rede de supermercados, ela sabe que os preços são remarcados diariamente nessas lojas especializadas. Por isso, quando vai até uma loja, além da lista de compras, ela define o que levar para casa de acordo com a data de vencimento. “Quando um Danone ou um congelado entra na semana do vencimento, eu sei que o gerente precisa liquidar o produto. Quanto mais próximo da data, mais barato ele vai ser”, diz.

Rosenilda (E) e Zenilda Silva monitoram as ofertas Foto: Hélvio Romero/Estadão
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Rosenilda acredita que a maior parte dos alimentos, incluindo os iogurtes, podem ganhar uma sobrevida de até um mês se congelados. Por isso, diz não se preocupar com a data anotada no rótulo. “Congelo quase tudo. Mas tenho consciência de que preciso consumir rápido. Quando é um produto mais delicado, como um embutido, divido com a família.”

Economia. A aposentada Madalena Rocha Barbosa Câmara, de 63 anos, é uma cliente habitual de lojas que vendem produtos próximos da data de vencimento. Faz dois anos que ela vai de duas a três vezes por semana às compras nesse tipo de loja. “Às vezes consigo economizar até 50% em relação ao que gastaria pelo mesmo item num supermercado normal.”

Madalena fica de olho na oportunidade Foto: Alex Silva/Estadão

Madalena, que cozinha diariamente para a sua família de cinco pessoas, não deixou de ir ao supermercado tradicional, mas procura aproveitar as oportunidades nas lojas de “vencidinhos”. “Essa economia ajuda bastante a sobreviver em períodos de crise.”

Geralmente ,as ofertas dessas lojas são de refrigerados, como iogurte, queijo, massa fresca e embutido. Ela diz que nunca teve problema de comprar produto estragado e só leva para casa itens cuja validade vence, no máximo, em três dias e na quantidade exata para consumir. 

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