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No país da desoneração tributária

Por Bernard Appy
Atualização:

É muito comum, no Brasil, que setores que demandam apoio do setor público concentrem suas demandas em medidas de desoneração tributária. Isso ocorre não apenas no caso de setores econômicos, mas também no caso de áreas específicas de interesse público, como, por exemplo, cultura, esporte, meio ambiente, etc. A consequência dessa situação é que há, em nosso país, uma quantidade enorme de medidas específicas de desoneração tributária, que alcançam tanto tributos federais quanto estaduais e municipais. Independentemente do mérito dos incentivos concedidos ou demandados, é importante ter em conta que nem sempre a desoneração tributária é a melhor forma de fazer política pública ou de incentivar um setor específico. Por um lado, a profusão de benefícios tributários acaba tornando o sistema tributário brasileiro extremamente complexo e disfuncional, prejudicando a eficiência econômica e aumentando o custo de compliance para as empresas. A consequência é um sistema tributário em que o que predomina é a exceção, e não a regra. Por outro lado, em muitos casos (provavelmente a maioria) o gasto público é muito mais eficiente como forma de concessão de incentivos que a desoneração tributária, uma vez que é muito comum que parte importante das desonerações tributárias acabe "vazando", não contribuindo para os objetivos pretendidos. A título de exemplo, se o governo reduz os tributos para incentivar o consumo de um determinado bem, parte importante dos benefícios vai para consumidores que adquiririam este bem mesmo que não houvesse a desoneração, e apenas parte dos benefícios efetivamente contribui para o aumento do consumo. Adicionalmente, o gasto público é mais transparente que a desoneração tributária, pois precisa ser incluído no Orçamento e comparado às demais prioridades do setor público. Há pelo menos dois motivos para que a demanda de apoio do setor público se dê na forma de desoneração tributária (e para que o poder público prefira conceder o apoio nesta forma), mesmo que esta nem sempre seja a melhor maneira de fazer política pública. O primeiro motivo é precisamente porque a desoneração tributária não exige a disputa anual pela inclusão da dotação correspondente no Orçamento. Para contornar esse problema, é comum setores buscarem criar fontes vinculadas de receita (usualmente na forma de novos tributos), tornando o sistema tributário mais complexo e irracional. Mas mesmo assim não conseguem escapar do contingenciamento de recursos, tornando inócua a vinculação de receitas. Já as medidas de desoneração tributária, mesmo quando temporárias, podem ter validade de até cinco anos, podendo ser prorrogadas por lei. Ou seja, mesmo quando o apoio do setor público via despesas é mais racional que a desoneração tributária, haverá uma preferência pela desoneração, pois esta é menos trabalhosa (não exige a disputa anual pela manutenção dos recursos) e dá mais segurança para os setores beneficiados. O segundo motivo pelo qual há uma clara preferência por instrumentos de desoneração tributária em detrimento do gasto público é a enorme rigidez orçamentária existente no Brasil. Para entender este ponto, pode-se considerar o exemplo de um Estado que deseje ampliar uma despesa sem vinculação (como segurança pública) em R$ 100 milhões e financiar essa ampliação de despesa com um incremento do ICMS, que é o principal tributo estadual. Como 25% da receita do Estado com ICMS é destinada aos municípios e, do restante, 25% é vinculado à educação, 12% à saúde e 13% ao pagamento da dívida refinanciada com a União, isso significa que, de cada R$ 100,00 arrecadados pelo Estado, R$ 62,50 já estão vinculados. Ou seja, para ampliar a despesa em segurança pública em R$ 100 milhões, o Estado teria de arrecadar R$ 267 milhões a mais. Em suma, a insegurança na obtenção de apoio do poder público via orçamento e a enorme rigidez orçamentária do País fazem com que os setores que demandam apoio do setor público busquem, sempre que possível, alguma forma de desoneração tributária. Quando a desoneração não é viável, a segunda alternativa é a criação de um novo tributo com vinculação específica ao setor. As consequências são um modelo ineficiente e pouco transparente de atuação do poder público - pois muitas vezes a desoneração tributária não é a melhor forma de atuação - e um sistema tributário altamente complexo e com um número excessivo de tributos. Se o Brasil quer ter um modelo mais racional de atuação governamental e um sistema tributário mais simples, então necessariamente terá de enfrentar as distorções existentes na estrutura orçamentária atual. Por um lado, é preciso reduzir o grau de rigidez orçamentária do País, substituindo mecanismos de vinculação de receitas por outras formas de garantia para os setores atualmente beneficiados, como educação e saúde. Pessoalmente, gosto de um modelo em que se garanta a preservação do valor real dos recursos destinados ao setor (ou do valor real per capita), colocando a ampliação deste valor no bojo da disputa por recursos orçamentários. Por outro lado, entendo que é preciso aumentar a segurança de algumas categorias de despesas públicas que sejam consideradas prioritárias, por exemplo, garantindo sua inclusão no Orçamento e seu não contingenciamento pelo período de quatro anos de uma legislatura parlamentar. Obviamente, essa segurança não pode se dar em detrimento da responsabilidade fiscal. Essas são apenas algumas sugestões. Talvez as soluções sejam outras, mas o fato é que, sem enfrentar os problemas causados pela estrutura altamente distorcida dos orçamentos públicos no Brasil, o País funcionará de forma menos eficiente e crescerá menos do que poderia com um sistema orçamentário mais racional que o atual.*Bernard Appy é consultor econômico, foi Secretário Executivo e Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda

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