Inquietante artigo publicado na quarta-feira no jornal Les Echos, de Paris, (Le bitcoin, une étape logique de l’histoire monétaire) argumenta que as criptomoedas têm de ser vistas como novo capítulo da história da moeda. E sugere: refletem “o recuo do centralismo e, portanto, o recuo do Estado”.
Dia 12, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) do Brasil proibiu aplicações em criptomoedas pelos fundos de investimento. A justificativa é a de que não se sabe ainda o que são, mas que, de todo modo, “não podem ser qualificadas como ativos financeiros”.
Há um vício grave no discurso da CVM. O de desconhecer a história da moeda. Ossos, conchas e folhas de tabaco foram, no passado, utilizados como moeda. Serviram como meios de pagamento, medida de valor e reserva de valor – as três funções clássicas de qualquer moeda. E até muito recentemente, não era preciso chancela do imperador para dar credibilidade a ela.
Ainda no tempo do padrão ouro, muitas moedas eram determinadas por quantidades de metal em pó. Algumas delas tiraram seu nome de unidades de peso: talento, libra, peso, peseta, marco. Nessas condições, não comportavam carimbo ou cunhagem oficial. Eram peso em ouro ou em prata.
O papel-moeda, por exemplo, foi inventado por bancos que nada tinham a ver com governos ou bancos centrais. Eram recibos de depósito de valores que navegadores ou comerciantes confiavam a um banqueiro. Depois passaram a circular de mão em mão porque não valia a pena carregar metais.
No Ocidente, a moeda passou a ser monopólio do Estado depois da Guerra dos Trinta Anos e da Paz de Vestfália (1648), quando os maiorais da época criaram a nova ordem global, ainda em vigor, que dividiu o mundo em Estados nacionais – e não mais em territórios governados por famílias, dinastias e principados, que mudavam a cada conquista ou a cada casamento de monarca. Foi quando a moeda passou a ser monopólio de Estado.
Já nos anos 40, moedas metálicas foram consideradas “relíquias bárbaras” pelo maior economista de então, o inglês John Maynard Keynes. Portanto, estavam fadadas a desaparecer. Em 1971 desapareceu o padrão ouro e as moedas passaram a ser “promissórias” garantidas por um banco central ou um Tesouro.
Hoje, a moeda deixou até mesmo de ser material e passou a ter natureza preponderantemente escritural. No Brasil, por exemplo, menos de 10% dos meios de pagamento (M2) são em papel-moeda ou moeda metálica. O resto são depósitos bancários e títulos apenas registrados em computador. Podem ser movimentados por um cartão de plástico ou até mesmo por clique em celular.
O que garante a aceitação do bitcoin e de outras criptomoedas e, mais ainda, o que lhes dá funções de moeda é sua confiabilidade garantida por uma estrutura eletrônica eficiente, o blockchain. A alta volatilidade do seu preço pode, no momento, tirar-lhe capacidade de reserva de valor. Isso aconteceu até mesmo com o ouro e a prata, por exemplo, no século 17, quando a Espanha inundou a Europa com metais preciosos provenientes de suas colônias.
Pode ser que um estouro de bolha ou um desastre financeiro qualquer tire muitas dessas criptomoedas de circulação, mas a própria natureza delas parece capaz de tomar o lugar hoje ocupado pelas moedas nacionais – e aí entra a argumentação de Jean-Marc Vittori, que escreveu o artigo do Les Echos acima mencionado.
A tecnologia de informação e toda a parafernália eletrônica favorecem a descentralização de algumas importantes prerrogativas dos Estados. E essa nova relação de forças pode estar tirando dos Estados e dos bancos centrais o monopólio da emissão de moeda.
Por enquanto, esta é apenas uma boa hipótese para ser examinada. Mas não pode ser desprezada, como vêm fazendo os diretores da CVM.