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O 'negacionismo' do déficit da Previdência

Por Pedro Fernando Nery
Atualização:

Segundo o dicionário, "negacionismo" é a ação de negar uma realidade que pode ser verificada empiricamente, mas que constitui uma verdade incômoda. Não é novidade que a Previdência é um dos principais itens por trás do grave desequilíbrio fiscal e que continuará a agravá-lo à medida que o envelhecimento da população se acentuar. Desnudado pela queda de receitas, o déficit deve subir 70% neste ano e mais 40% em 2016, chegando a incríveis R$ 120 bilhões, ou 2,7% do PIB. Essa proporção seria 3 vezes maior do que os 0,9% do não tão distante ano de 2013. Apesar da situação dramática e da necessidade de enfrentá-la, reformas esbarram em um argumento tão popular quanto inacreditável: o de que não existe déficit. Entender o argumento da chamada "falácia do déficit" e aprender a rebatê-lo se faz essencial neste momento. Propagada por advogados previdenciários, sindicalistas e políticos, essa antiga tese foi a principal conclusão da primeira audiência realizada em 2 de setembro no Congresso para instruir a MP 676, que cria a fórmula 85/95 móvel. As diversas e inventivas razões dos "negacionistas" têm um fio condutor comum: a contabilidade do INSS deveria incluir outras receitas e excluir certas despesas. É no argumento do "mito do déficit" que a contabilidade criativa encontra a Previdência. Do lado do gasto, defende-se que as aposentadorias rurais (R$ 54 bilhões até julho) sejam excluídas da conta do INSS, e pagas de outra forma pelo governo. A justificativa da exclusão é que esse aposentado não contribui diretamente para o sistema, mas recebe dele. Tirar o rural do INSS reduz a despesa sem piorar a receita: não haveria mais déficit. Trata-se de ideia análoga à de sugerir, para um plano de saúde em dificuldade, que não se leve em conta os pacientes com câncer. O INSS constitui um seguro social, e o sinistro, como o câncer do plano de saúde ou uma batida em um seguro de carro,- tem de ser plenamente contabilizado. A mágica - e falta de lógica - de sumir com um segurado que dê mais despesa e menos receita do que a média poderia ser aplicada a outros grupos, evidenciando a fragilidade do argumento. A mulher contribui por menos tempo do que o homem, mas vive mais. O gaúcho tem expectativa de vida maior que a média, e lá há mais aposentados e menos contribuintes. O INSS talvez não tivesse déficit se mulheres ou os Estados do Sul fossem tirados da conta, mas isso obviamente não faz sentido. Como outros pontos dos negacionistas, tirar os rurais do INSS é como trocar moedas dos bolsos de uma mesma calça (neste caso, o Tesouro). Já pelo lado da receita, levanta-se que tributos da seguridade, Cofins e CSLL, deveriam ser completamente vinculados e considerados como receitas do INSS. Não se explica que outras despesas devem parar de ser financiadas por esses impostos. Tiraríamos dinheiro da saúde (que também é parte da seguridade)? Do investimento? O olho gordo nesses tributos parece também ignorar que foi justamente a desvinculação que permitiu o crescimento dessas contribuições. Sem a DRU, Cofins e CSLL não teriam o valor que têm hoje. Cabe lembrar que esses impostos já são usados hoje para cobrir o rombo do INSS. Um pouco mais de reflexão revela que, com a aceitação desse tipo de argumento, jamais haverá déficit, bastando contabilizar como receita do INSS o dinheiro dos impostos usados para cobrir seu rombo. Em 2016, talvez seja a nova CPMF. Outro argumento que alimenta a "falácia da falácia" do déficit previdenciário é a existência da dívida ativa do INSS: com esse dinheiro que deixa de ser arrecadado, o déficit não existiria, dizem alguns. Porém, mesmo que conseguisse recuperar o que nenhum banco consegue (toda a dívida de seus credores), o INSS pagaria todos os benefícios de 2015 só até setembro. Estes cerca de R$ 300 bilhões são insuficientes porque há na alegação uma confusão elementar que não distingue um estoque (a dívida ativa) de um fluxo (o pagamento de benefícios). Infelizmente, ainda que fizessem sentido, nenhum dos elementos que servem para negar o déficit poderia fazer frente ao seu aumento perante o processo de envelhecimento da população. Cofins e CSLL são impostos, rígidos, incapazes de acompanhar a transição demográfica, veloz. Não se trata de uma questão contábil, mas de um contingente cada vez maior de inativos a ser financiado por um contingente cada vez menor de trabalhadores em atividade. O problema precisa ser encarado, e sem contabilidade criativa, como foi no resto do mundo - nos Estados Unidos, o país mais rico do planeta, já se fala em idade mínima de 70 anos nas eleições primárias presidenciais dos republicanos. Para o matemático e financista Nassim Taleb, o maior risco que as pessoas correm hoje é viver demais "inesperadamente", sem se prepararem financeiramente para isso. Se o Brasil fosse uma pessoa, a afirmação se aplicaria perfeitamente. Precisamos reconhecer que, apesar do descontentamento dos atuais aposentados, nossa Previdência é das mais generosas do mundo. Segundo o Global AgeWatch Index de 2015, espécie de IDH da população idosa, somos o 13.º país no mundo em segurança da renda, muito embora sejamos apenas o 56.º no ranking total e estejamos apenas depois da 70.ª posição na comparação do PIB per capita da população como um todo. O déficit existe, e só vai piorar à medida que a proporção de idosos na população triplicar nas próximas décadas. Hoje, segundo o IBGE, já há mais famílias brasileiras com cachorros do que com crianças, que sustentariam a Previdência no futuro. Só que cachorros não recolhem contribuição previdenciária. De fato, a negação do déficit tem uma única lógica: em um país que ainda tem relativamente muitos jovens e poucos idosos, seria mais do que natural que realmente não houvesse déficit. Essa não é mais a nossa realidade. O negacionismo do déficit está na ponta da língua dos que, em dissonância cognitiva, precisam justificar a concessão de mais benefícios, seja na Justiça ou na política. Mas "a verdade é o que é, e segue sendo verdade ainda que se pense o revés", dizia o poeta Antonio Machado. Enquanto no debate político ainda se nega a existência do problema, o Tribunal de Contas da União estima déficit atuarial de incríveis R$ 3 trilhões em 2050. É déficit pra cachorro. * CONSULTOR LEGISLATIVO DO NÚCLEO DE ECONOMIA DO SENADO FEDERAL. O AUTOR AGRADECE OS COMENTÁRIOS DE FABIO GIAMBIAGI E MARCOS MENDES

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