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Sobre sacrifícios

Por Luís Eduardo Assis
Atualização:

Atribui-se originalmente a Garibaldi, durante a campanha de unificação da Itália, a frase de que só poderia prometer "trabalho, sangue, suor e lágrimas". A mesma imagem foi usada por Theodore Roosevelt décadas depois, mas ficou mesmo famosa quando Winston Churchill a incluiu em seu discurso ao Parlamento inglês, em 1940, diante da ameaça da invasão nazista. A dramaticidade do momento que vivemos no Brasil hoje é infinitamente menor, mas a receita não é muito diferente. A presidente Dilma Rousseff não pode prometer nada de bom para 2015. Até o governo já sabe que, se ficar, o bicho come. A conta que nos deixaram os experimentos da nova matriz econômica é imensa. Nenhum país pode sobreviver impune a um déficit fiscal de 6,7% do Produto Interno Bruto (PIB) e um rombo nas transações correntes de 4,2%. Sacamos a descoberto contra o futuro - e ele chegou. O desmanche dessa aventura exige sacrifícios. Tudo indica que o recuo do PIB em 2015 fará com que tenhamos o pior desempenho dos últimos 25 anos. Pior: o ajuste fiscal, tão difícil de ser implementado, deverá ser parcial e de má qualidade. Estamos apagando incêndio com água suja. Não só é improvável que o governo consiga de fato alcançar um superávit primário de 1,2% do produto, como essa meta é insuficiente para estabilizar a relação dívida/PIB. Com juros reais na faixa atual, essa relação pode aumentar algo como seis pontos porcentuais em 2015. Não só é água suja, é pouca água. Será preciso fazer mais em 2016. O que o ministro Joaquim Levy propõe hoje é apenas o primeiro passo. Se o ajuste fiscal fosse uma partida de futebol, estaríamos ainda cantando o hino - e já choramos. Mas, se correr, o bicho pega. O avanço do ajuste fiscal e o aumento da inflação derivado da correção cambial e da liberação dos preços represados têm tudo para agravar a crise política. Alguns analistas comemoram que o povo foi às ruas no último dia 15 de março. Será mesmo? Pesquisa do Datafolha indica que 41% dos manifestantes em São Paulo têm renda superior a 10 salários mínimos, dos quais nada menos do que 19% declararam rendimentos acima de 20 salários mínimos. O último censo do IBGE mostrava que, para o Brasil como um todo, o porcentual das pessoas que ganham acima de 10 mínimos era de apenas 3,1% da população, enquanto a faixa acima de 20 mínimos congregava míseros 0,9% dos brasileiros. Registra-se essa disparidade não para desqualificar o vigor cívico da manifestação paulistana. O argumento, aqui, é outro: à medida que avançamos no ajuste recessivo, os indicadores do mercado de trabalho vão piorar, o que pode acrescentar dezenas de milhões de vozes descontentes ao coral desafinado da oposição. Nem tudo está muito ruim - ainda. A massa de salários ampliada subiu 11,5% no acumulado de 12 meses terminados em janeiro de 2015. É bem mais do que a inflação e o aumento mais forte desde janeiro de 2013. A taxa de desemprego subiu em fevereiro para 5,9%, mas ainda é menos da metade da taxa registrada quando da posse do presidente Lula e uma das mais baixas da série histórica desde então. Houve corte de 84 mil empregos com carteira assinada nos primeiros dois meses do ano, mas a criação de postos de trabalho no mercado formal foi de 3,3 milhões no primeiro mandato da presidente Dilma e o total de trabalhadores com carteira assinada era de 41,1 milhões em fevereiro. O salário mínimo real ainda é 4% maior que a média do ano passado, 16% maior que em 2011 e 65% mais alto que há dez anos. Todos esses indicadores já iniciaram uma tendência de queda, que deve se aprofundar nos próximos meses. Isso vai desapontar milhões de pessoas que até agora não manifestam publicamente seu desagrado. Crescimento. Não seria tão ruim se o ajuste fosse temporário, como diz a presidente, e o crescimento econômico pudesse ser rapidamente retomado. Mas de onde pode vir o crescimento? O consumo das famílias está esgotado e os gastos do governo estão na mira do próprio ajuste fiscal. O aumento das exportações pode ajudar, mas parte da desvalorização será cancelada pelo aumento da inflação e outra parte é neutralizada pelo fato de que outros países também desvalorizaram sua moedas, sem falar que os termos de troca (a relação entre preços de exportação e de importação) ficaram mais desfavoráveis. Isso poderá exigir maior desvalorização, o que implica inflação mais alta, queda dos salários reais e, claro, dificuldades adicionais para negociar o ajuste fiscal com o Congresso Nacional. Sobram os investimentos. Mas como convencer uma empresa a investir num quadro que conjuga recessão, aumento de impostos, queda dos salários, crise política e corte de crédito? Nessas condições, quem tem credibilidade para pedir "sangue, suor e lágrimas"? Um governo acuado pelos escândalos de corrupção e chantageado pelos partidos da base aliada? Um governo que exerce uma liderança cacofônica e que deixa o ministro da Fazenda negociar sozinho com o Congresso? Se houvesse liderança política coesa e determinada, o ajuste poderia ser mais rápido, mais eficaz e menos doloroso. Precisamos da milimétrica habilidade de um cuidadoso neurocirurgião, mas o que temos é um açougueiro estabanado que opera cérebros usando luvas de boxe. Com um ajuste mitigado, a recuperação econômica será morosa e permeada por crises políticas pontuais. O risco é de ficarmos no meio do caminho, com um ajuste fiscal forte o suficiente para agravar a crise política, mas insuficiente para equacionar os graves problemas econômicos. Neste caso, aguarda-nos um longo período de baixo crescimento. Vários estadistas pediram sacrifícios como recurso retórico e se tornaram figuras históricas. Não será, certamente, o caso da presidente Dilma Rousseff. *Luís Eduardo Assis é economista, foi diretor de Política Monetária do Banco Central e professor da PUC-SP e da FGV-SP. E-mail: luiseduardoassis@gmail.com 

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