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‘TEMOS DE DISCUTIR A SOLVÊNCIA DAS EMPRESAS'

Onda de recuperações judiciais já é realidade e pode se agravar, diz Leme

Por Alexa Salomão e Ricardo Grinbaum
Atualização:

O economista Paulo Leme, presidente do banco americano Goldman Sachs no Brasil, tem recebido informações reconfortantes do exterior. “O investidor estrangeiro está muito interessado no Brasil, ele quer participar, está interessado”, diz ele. A má notícia é que eles ainda estão em compasso de espera porque o governo tem demorado a apresentar um cenário mais preciso para que possam avaliar riscos e oportunidades por aqui: “Falta um diagnóstico mais abrangente do tamanho do problema”. A sua maior preocupação, no entanto, nem é com o ajuste fiscal, que parece bem encaminhado. Para Leme, igualmente premente, mas ignorada, é a frágil situação do setor empresarial: “A característica particular deste momento é que temos uma crise de solvência”, diz. A seguir, trechos da entrevista que concedeu ao Estado.

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A situação está indefinida. Já é possível traçar cenários para o Brasil? A minha leitura é que a discussão está muito focada na parte fiscal, mas é preciso ter uma visão mais ampla, até para entender a gravidade do problema. Imagine que você vai fazer um exame de medicina diagnóstica e tem uma leitura completa dos seus sinais vitais. Algumas coisas vão muito bem e não falamos delas. A parte do balanço de pagamentos vai bem. O tamanho, a velocidade e a abrangência do ajuste externo é imenso. É muito raro que, numa crise como essa que estamos passando, não se tenha problemas com o balanço de pagamentos. Essa é uma dimensão interessante. Mas tem outra dimensão que não está sendo discutida e preocupa por não ser diagnosticada adequadamente: a situação do setor privado. Estou chamando a atenção para as recuperações judiciais, as falências de empresas. Isso exige uma coordenação que vai além da esfera econômica e entra pela esfera jurídica. É preciso pensar no equilíbrio geral. O fiscal e a solvência do Estado são parte fundamental, mas temos de discutir a solvência do setor privado. 

O sr. fala que há risco de uma grande onda de recuperações judiciais? Dobrou desde o ano passado para cá. Já é um fato, não é um risco. 

Fala de uma grande onda, que se espalhe de forma mais violenta, atingindo inclusive grandes empresas?  Aí depende. É por isso que acho que vale a pena avaliar as condições. No primeiro trimestre, tivemos nova retração. Já são 9% de retração em dois anos. A demanda doméstica contraiu quase 6%. Algumas empresas se endividaram muito quando o ciclo era mais favorável. Elas estão alavancadas e a geração de receita está comprometida pela profunda recessão, que tem uma taxa de desemprego já em 11,2%. A geração de receita delas não consegue cumprir o serviço da dívida, que está em CDI (Certificados de Depósito Interbancário, título que praticamente tem a variação da taxa básica de juros) mais um spread altíssimo. Elas tiveram de consumir capital próprio. A contração do estoque de capital foi da ordem de 30%. Então, a destruição de capital e de trabalho – que é capital humano – é imensa. A característica particular desse momento é que temos uma crise de solvência. Se fosse possível reverter a situação da economia real em três meses, elas dariam uma volta nisso e se recuperariam. Mas, mesmo resolvendo a crise macroeconômica, a recuperação só viria no ano que vem e uma taxa de crescimento sólida, expressiva, só ocorreria em dois anos. Não havendo uma reversão do quadro, será preocupante. Mas ainda dá para reverter. Esperar que essa situação se revolva por si só é uma alternativa, eu diria, arriscada. É por isso que eu volto ao começo: ter um setor privado capaz de investir e crescer é essencial.

É preciso para as empresas uma espécie de Proer (programa de recuperação realizado nos anos 90 para sanear o sistema financeiro nacional)? Essa é uma pergunta interessante. Eu prefiro pensar de outra maneira. O Proer dá a entender que é preciso oferecer ajuda. Que a solução é pública. Mas não é o caso. Não precisa de recurso público. Vamos dividir o setor privado que está com complicações em dois grandes blocos. Um inclui empresas ligadas à Lava Jato – empreiteiras, construtoras – e empresas de açúcar e álcool, que vinham com problemas. O outro inclui empresas de setores que foram afetados pela profunda recessão. O bloco da Lava Jato tem comprador, mas algumas operações se dissipam quando passam pelo compliance (avaliação mais rigorosa dos ativos). A complexidade da legislação e o tempo gasto com temas jurídicos interferem. É preciso aperfeiçoar a questão jurídica. As empresas precisam pagar o que devem, ser punidas, mas num prazo mais rápido. É preciso agilizar a tramitação do acordo de leniência. 

O sr. diz mudar a lei anticorrupção? Precisamos de uma versão brasileira do americano chapter eleven (capítulo 11 da lei de falência americana que concede um prazo para a empresa reorganizar pendências, pagar as contas e voltar à ativa). Precisamos proteger o capital e o trabalho. Hoje, a lei não protege. Há compradores para essas empresas, mas quando eles se debruçam sobre a empresa e sobre a lei identificam vários riscos. Quem adquirir pode ficar com uma herança aí.

Muitos advogados têm questionado a aplicação da lei e os procedimentos em relação a essas empresas e chegam a dizer que eles mais facilitam a liquidação do que a recuperação. O sr. concorda com eles, então? A primeira coisa que é necessária para resolver um problema é ter a consciência de que ele existe. Nesse caso, acho que ainda não existe essa consciência. A Lava Jato trouxe muitos benefícios, mas não podemos fazer as coisas a qualquer custo. Eu penso como economista. As coisas têm custo e benefício. Eu vejo o benefício. O custo não está sendo imputado. E qual é ele? A destruição de empregos e de capital em empresas com grande qualidade profissional e de engenharia. É preciso ter gente preparada e processos ágeis em diferentes órgãos do governo – Banco Central, Fazenda – e no Judiciário para agilizar soluções. O Brasil precisa de capital externo. Para colocar num número muito simples. Com o desemprego e a queda real dos salários, o consumo continua caindo. Não vai gerar atividade. Num ajuste fiscal, espera-se que o consumo e o investimento do governo sejam contracionistas. Também não vai gerar atividade. As duas fontes de crescimento que restam são exportações, que vão bem, e o investimento privado. Para gerar um crescimento no ano que vem, de 1%, precisa ter um crescimento de pelo menos 10% no investimento em termos reais. Os últimos números são de queda de 17%. Para virar isso, primeiro, é preciso mudar expectativas. Hoje, temos muito mais boa vontade do que mudança de expectativas. As pessoas querem que dê certo. Segundo, as empresas precisam ter capital. Os bancos estão com uma exposição muito grande ao setor privado. É muito difícil que haja uma fonte de financiamento privado via crédito dos bancos. O financiamento precisa ser externo. E há interesse muito grande do investidor estrangeiro. 

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E para as empresas fora do bloco da Lava Jato, o que poderia ser feito?  Primeiro, é preciso fazer o ajuste macroeconômico. Segundo, dar um empurrãozinho, como aquele que se dava no fusquinha 1.300. Você empurrava, ele pegava e ia bem. A política fiscal, coordenada com a monetária, pode funcionar (uma boa política fiscal para as contas públicas permite que a monetária reduza a taxa de juros). Não estou aqui apoiando almoço grátis. Não é para sair cortando taxa de juros. Mas é preciso uma taxa de juros menor, apoiada numa política fiscal melhor. Isso daria mais espaço para a rolagem da dívida. Rolar uma dívida a 14,25%, mais um spread, é muito diferente de rolar 5 pontos porcentuais a menos. Para algumas empresas, essa é a diferença entre sobreviver ou não. Insisto no ponto. Precisamos de uma visão geral. Se formos comparar com um jogo de futebol, estamos nos primeiros cinco minutos. Vimos coisas positivas, mas não dá para prever como serão os demais 85 minutos. 

E como o sr. viu a largada, que em duas semanas incluiu a queda de dois ministros?  A largada foi complicada. Parecia um grande prêmio da Austrália, em que alguns pilotos já sobram. Mas, numa primeira etapa, vimos em que direção geral o governo Temer quer ir em termos de tamanho do Estado, de ajuste e de crescimento. Foi bem recebido. Na segunda parte, a de liderança, fez excelentes escolhas: profissionais com experiências, vivências nos setores em que vão atuar. Mas o tempo é curto. O capital inicial de boa vontade se evapora facilmente. É fundamental passar para a terceira fase, a de formulação mais ampla. Não basta dar uma medida pontual. A consolidação da credibilidade – um dos insumos para gerar expectativas positivas e crescimento – depende de previsibilidade. O empresário não investe sem isso. A fixação do teto de gastos é uma excelente medida, mas não me diz muito sem informações como onde estamos, qual o tamanho do problema, qual a velocidade em que vou avançar, para onde quero reduzir a dívida pública e, o mais importante de tudo, quem vai pagar a conta? Estão dizendo, mas de forma muito velada. Precisam deixar mais claro ainda. Não dá para tentar proteger a sociedade. Se eu sou um paciente com problemas graves, não quero que o médico passe a mão na minha cabeça. O programa vai ser muito penoso, há um custo, que vai ser alto, mas o custo de não fazer é maior ainda. Para todos. Aí, será preciso passar para a quarta etapa, a da implementação. Só depois vai ser possível destravar o processo decisório dos investidores. É só aí que eles vão saber com o que trabalhar, com qual taxa de juros, qual câmbio, o valor dos ativos, a projeção de demanda e fazer o investimento sabendo qual é o retorno esperado. Ainda não há informação suficiente para o investidor tomar decisões. Eu sei que são apenas três semanas.

Quais informações trariam mais clareza? Falta um diagnóstico mais abrangente do tamanho do problema. No setor público, como está a dívida, qual o tamanho dos passivos contingentes. No setor privado, quantas empresas estão com problemas? São 10, 50, 300? Qual o tamanho das empresas? As dívidas são externas ou domésticas? Outra coisa que é fundamental é quantificar. Para onde eu quero ir? No crescimento, estou em -5,7%. Para onde quero ir: 3%, 4%? A dívida bruta está perto de 70%, deve ir a 80%, mas eu quero baixar para 55% em cinco anos. O governo precisa de receitas extraordinárias nessa transição, vai fazer um programa de privatização, de concessões. Mas quais são as empresas? Tudo isso indica qual é a velocidade que quero ir e quem paga o que: o que paga o contribuinte, o trabalhador, o acionista? 

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Tem um prazo para o governo apresentar esse diagnóstico? Um mês? Precisa ser rápido. Não temos meses. Estamos falando de semanas e já se passaram três semanas. 

O governo parece acreditar que já fez o diagnóstico. Projetou um rombo, lançou medidas. Mas o sr. está dizendo que são insuficientes. Sim. Muito. Sei que é colocar pressão, mas é uma pressão saudável. Na coletiva de Temer (quando empossou os presidentes de estatais na semana passada), ele abordou de maneira elegante, suave, que os desafios são grandes. Ora, eu já sei disso. Precisa ser mais claro. Evitar o debate político com a maturidade que a sociedade exige para poder se preparar e tomar as suas decisões é um erro. A sociedade teve uma participação grande no processo decisório. Está amadurecida. E o governo precisa de capital estrangeiro. A boa notícia é que ele está interessado, mas precisa saber qual o programa para dimensionar os riscos e os retornos. 

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