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Doutor em Economia

Vacina pública ou privada?

O que do modelo exitoso das vacinas pode ser replicado em outros órgãos?

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Por Pedro Fernando Nery
Atualização:

O êxito da vacina foi usado nas redes para celebrar os servidores públicos concursados. Também na última semana, deputados foram ao Ministério Público porque não haveria previsão no orçamento do Estado para as vacinas – é que elas na verdade estariam sendo pagas por uma organização privada. A confusão se explica pela existência de duas entidades homônimas: o Instituto Butantã e a Fundação Butantã.

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Servidores públicos são mesmo parte inquestionável dos bem-sucedidos esforços de criação de vacinas no Instituto Butantã (Coronavac) e na Fiocruz (“vacina de Oxford”). Uma história não contada é que boa parte desta empreitada é possibilitada por organizações privadas, como a Fundação Butantã e, em menor grau, a Fiotec (Fundação de apoio à Fiocruz).

Nem a Fundação Butantã nem a Fiotec foram criadas ou autorizadas por leis específicas. Elas são regidas por estatutos próprios. São privadas, mas sem fins lucrativos. Existem para ajudar órgãos públicos, como o Instituto Butantã e a Fiocruz.

Vacina mostra que serviços estatais podem se beneficiar da atuação privada sem comprometer a gratuidade e a qualidade. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Regidas primordialmente pelo direito privado e não pelo público, podemos dizer que ajudam porque podem ser mais “eficientes”. Para comprar bens e serviços, não precisam se sujeitar às mesmas regras infernais de licitação – que frequentemente resultam em produtos de menor qualidade ou processos judiciais. Para contratar pessoal, não precisam fazer concursos – que podem durar anos. Seus funcionários trabalham via CLT e contribuem para o INSS.

O modelo é altamente incomum. Para conseguir maior flexibilidade, grosso modo, governos possuem entidades como autarquias, fundações públicas, empresas estatais. Mas especificamente para a ciência, tecnologia e educação admite-se fundações de apoio, particulares, organizadas por lei de 1994. Elas existem em diversas universidades, mas dificilmente com o tamanho que a Fundação Butantã e a Fiotec têm em relação aos seus órgãos originários. 

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O Portal da Transparência registra que a Fiotec teria sido em 2020 a maior prestadora de serviços de todo o governo federal. O órgão que mais contrata essa Fundação de Apoio à Fiocruz é a própria Fiocruz. Assim, parece preferir gastar parte de seus recursos com uma entidade que não está sujeita às mesmas regras que ela – inclusive para a vacina (via Bio-Manguinhos). O que nos ensina a existência de uma “fundação de apoio a uma fundação”? E o fato de a apoiada ser quem contrata a que a apoia?

No caso paulista, o tamanho da terceirização do instituto para a Fundação Butantã parece ser relativamente maior – ao ponto de vir da parte privada o dinheiro da vacina.

Esse modelo não é livre de controvérsia. O TCE chegou a questionar por que contratos da pandemia não eram feitos direto com o instituto. Nos últimos anos, a Associação de Docentes da USP veiculou críticas à fundação. Em uma, sugere privatização disfarçada do instituto e aponta que o arranjo teria levado a uma capacidade exagerada de produção de vacinas em detrimento, por exemplo, da área cultural. Outros críticos apontaram para falta de transparência e gigantismo da entidade privada, que concentraria mais funcionários e poder que a pública.

A ausência de burocracia chama atenção no caso do desvio de dezenas de milhões da fundação, denunciado pelo MP em 2017 e ocorrido na década anterior. Um gerente teria simplesmente feito centenas de transferências a partir das contas da Fundação.

Porém, a possibilidade de operar fora dos limites tradicionais do direito público parece ter sido uma vantagem para o Butantã e a Fiocruz no que caminha para ser um fantástico êxito. O que do modelo exitoso das vacinas pode ser replicado em outros órgãos? Se não faz sentido que todo órgão tenha um órgão sombra sujeito a outras regras, tampouco é óbvio que a facilidade para contratar seja exclusiva da ciência.

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É preciso colocar a bola no chão no debate de reformas administrativas. A cadeia de prestação de serviços tem partes em que funciona melhor o regime de direito público (mais voltado à impessoalidade, carregando risco de ineficiência) e outras em que é melhor o privado (mais voltado à eficiência, com risco de pessoalidade). Não se cogita que especialistas em regulação da Anvisa não são sejam estáveis, para que possam se escudar de pressões políticas e empresariais, nem que funcionários da indústria de oxigênio sejam concursados, outro extremo desse espectro. 

O Estado não deve terceirizar a formulação de políticas públicas, mas também não deve ter fábricas de respiradores. Onde traçar a linha? A discussão não pode ser interditada com os estigmas de “privatização”, “desmonte”, “sucateamento”. A vacina mostra que serviços estatais podem se beneficiar da atuação privada sem comprometer que o resultado final seja público, gratuito, de qualidade e universal.

*DOUTOR EM ECONOMIA