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Voar, cair, voar de novo

No movimento de expansão acelerada, setor de tecnologia talvez sofra solavancos, mas não acabará com reprise do crash pontocom

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Por Redação
Atualização:

Em dias de céu azul, quem olha para o mar em Crissy Field, junto à ponte Golden Gate, em São Francisco, tem grande chance de ver empreendedores do setor de tecnologia dando piruetas no ar. O kite surf tornou-se o hobby predileto do pessoal das startups da Bay Area. Alçados por um cordame altamente tensionado, pelas imprevisíveis rajadas de vento e pelo prazer em se arriscar, eles levantam voo e executam manobras no ar, antes de voltar a deslizar sobre as ondas. Algumas aterrissagens são suaves; outras, não. A prática exige habilidade, equipamento e experiência adquirida à custa de quedas e trambolhões, mas é preciso contar também com alguma dose de sorte e ambição. E nem os mais experientes têm como controlar o vento.

Índice Nasdaq registra recordes com investidor ansioso para lucrar com a valorização das startups Foto: Carlo Allegri/Reuters

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Em terra, prazer e risco também andam de mãos dadas. A cidade de São Francisco, o Vale do Silício e a região costeira que se estende ao longo da Bay Area tiveram uma década fantástica na condição de centro da indústria mundial de tecnologia. As maiores empresas da área alçaram voo e alcançaram alturas antes inimagináveis, chegando a representar tudo que o mundo vê de mais empolgante no capitalismo americano. Até os peixes pequenos do segmento atraíram montanhas de dinheiro. O Vale transformou vidas e idiomas, criando verbos novos - googlar, blogar, tuitar - e acrescentando sentidos a outros que já existiam - curtir, compartilhar, postar.

Todos os anos, novas ideias passam de esboço a sensação. Criar uma startup é coisa tão comum que em Mission, bairro de São Francisco, é possível comprar cartões de felicitações com a inscrição: “Parabéns pela sua primeira captação de investimentos”. O Uber, fundado há seis anos com o intuito de conectar motoristas e passageiros, é avaliado em US$ 41 bilhões; com sete anos, o Airbnb, por meio do qual as pessoas transformam suas casas em hotéis, é avaliado em US$ 26 bilhões. Todas as semanas, executivos provenientes dos lugares mais distantes vêm aprender com esse centro de inovações. Por toda parte tem-se a impressão de que há alguma coisa maravilhosa acontecendo. Morar em São Francisco hoje, com sua agitação e suas ideias geniais, é como “morar em Florença na época do Renascimento”, diz o jovem e empolgado Sander Daniels, fundador do Thumbtack, um aplicativo que conecta profissionais qualificados com serviços que têm a ver com suas habilidades.

No ano passado, cerca de 20% de recém-formados em administração de empresas se empregaram em companhias de tecnologia, porcentual mais elevado desde o ano 2000. Como em corridas do ouro anteriores, o fluxo incessante de gente que se muda para a região provoca queixas, tanto por parte de moradores antigos, como de outros recém-chegados. Em qualquer café, seja no centro de São Francisco ou em Palo Alto, ouvem-se reclamações sobre o trânsito insuportável e os preços absurdamente altos dos imóveis.

Ao mesmo tempo, ouvem-se comentários preocupados com a possibilidade de que não durem muito os bons tempos que estão na origem desses problemas. O índice Nasdaq vem registrando um recorde de alta após o outro - o mais recente deles no pregão de 20 de julho. Investidores ansiosos por lucrar com aquela que será a próxima nova sensação do mercado fazem as valorizações das startups mais populares e de crescimento mais acelerado atingir a casa dos bilhões de dólares. O dinheiro distorceu as expectativas dos empreendedores. Quando, há três anos, o Facebook pagou US$ 1 bilhão pelo Instagram, um site de compartilhamento de fotos com 13 funcionários e nenhum faturamento, muitos acharam a quantia exagerada. O fundador do Instagram, Kevin Systrom, de 31 anos, tornou-se símbolo do sucesso das startups. No ano passado, o mesmo Facebook pagou assombrosos US$ 22 bilhões pela companhia de troca de mensagens WhatsApp, cujas vendas não passavam de US$ 10 milhões. Agora, as pessoas dizem que Systrom vendeu cedo demais.

Ganância, prodigalidade, empresas minúsculas com valorizações que desafiam o bom senso: não é difícil detectar ecos da virada do século, quando a bolha pontocom estourou espetacularmente, pondo a economia americana em crise. Mas quem acha que a história está prestes a se repetir não se dá conta de como as coisas mudaram de lá para cá. Atualmente, os empreendimentos de tecnologia vendem produtos e serviços com os quais já geram receitas, em vez de apenas dizer que um dia talvez deem dinheiro. E o grupo de pessoas que entra com recursos para os investimentos é muito menor agora do que naquela época. Os riscos recaem sobre número menor de ombros.

Um novo tipo de herói. Isso não chega a ser totalmente tranquilizador. Se os riscos se limitam a menos pessoas, o mesmo acontece com os benefícios. A oportunidade de investir em muitas das mais promissoras empresas do Vale do Silício está restrita a um pequeno círculo de gente rica e bem relacionada. O resultado não é somente a exclusão do investidor médio, mas também a interposição de um biombo que poupa as startups do escrutínio a que as empresas de capital aberto estão sujeitas. Assim, ideias não muito boas podem estar indo mais longe do que deveriam, aumentando as chances de um futuro ajuste de contas.

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O medo de uma reedição do crash de 2000 deriva, em grande medida, do tamanho do tombo que o mercado levou naquela altura. Entre 1997 e 2000, com milhões de americanos usando suas recém-abertas contas de operações online para comprar ações de internet, o índice Nasdaq triplicou. Empresas como Garden.com, um site onde jardineiros e empresas de jardinagem poderiam comprar suprimentos e trocar dicas, abriram o capital sem antes testar seu modelo de negócios e sem ter reserva de caixa. Quando, no começo de 2000, diversas empresas de telecomunicações foram à falência, o edifício inteiro ruiu. Entre março e dezembro de 2000, a queda do Nasdaq fez com que aproximadamente US$ 4 trilhões virassem pó. O Vale do Silício tornou-se uma terra arrasada; muitas das empresas da região quebraram. O subsequente “inverno nuclear”, durante o qual os negócios no setor de tecnologia ficaram paralisados, prolongou-se por vários anos.

No entanto, quando se olha para além da simples dimensão daquela escalada e queda avassaladoras, as diferenças com o momento atual ficam claras. Em primeiro lugar, a base sobre a qual se ergue o sucesso atual é bem maior. Em 2000, cerca de 400 milhões de pessoas em todo o mundo tinham acesso à internet; no fim de 2015, serão 3,2 bilhões de pessoas navegando pela rede. “A indústria de tecnologia não é mais um setor vertical, como foi durante quatro décadas”, diz John Battelle, jornalista e empresário que lançou a revista Industry Standard, publicação que cobriu a euforia pontocom antes de ir ela própria à falência, em 2001. “Agora, é uma força horizontal, espalhando dinamismo por toda a economia.”

Os smartphones criaram oportunidades de negócios globais que não tinham como existir antes - um serviço como o prestado pelo Uber não funcionaria sem esses dispositivos. Transformar essas oportunidades em empreendimentos embrionários é fácil. A nuvem, que permite às empresas expandir sua capacidade de processamento e seu armazenamento de dados sem fazer investimentos de capital, mantém os custos baixos, o mesmo acontecendo com os softwares de código aberto. As companhias usam as mídias sociais para fazer marketing de graça.

Não é só na Baía de São Francisco que tais vantagens podem ser aproveitadas. O setor de tecnologia também floresce em outras partes do planeta. Mas não há lugar capaz de rivalizar com o elixir de cabeças brilhantes, experiência e dinheiro que há em São Francisco. Atualmente, o valor total das companhias de tecnologia da Bay Area com valorização acima de US$ 1 bilhão chega a pouco mais de US$ 3 trilhões, quantia que vem aumentando saudavelmente há quase dez anos.

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Mesmo que a maioria das empresas de tecnologia que hoje parte para a abertura de capital ainda não dê lucro, exatamente como acontecia em 1999, seus modelos de negócio são mais realistas. A maior parte está perdendo dinheiro por conta de uma estratégia premeditada de expansão, e não porque não tenha alternativa. No ano passado, as companhias de tecnologia que fizeram ofertas públicas iniciais de ações (IPOs, na sigla em inglês) tinham, em média, 11 anos de existência e receitas de US$ 91 milhões, em comparação com 4 anos de existência e receitas de US$ 17 milhões em 1991, segundo Jay Ritter, professor da Universidade da Flórida, especialista em mercados de capital.

Investidores que operam nos mercados de ações, alguns dos quais largaram seus empregos para se dedicar a essa atividade nos anos 90, hoje não se deixam levar tão facilmente pela euforia. Segundo Ritter, das 632 empresas de tecnologia que realizaram IPOs em 1999 e 2000, aproximadamente 29% viram suas ações dobrar de preço no primeiro dia. Das 53 empresas do setor que abriram seu capital em 2014, só duas “explodiram” de forma tão espetacular. No primeiro trimestre de 2000, a média da relação preço/lucro na Nasdaq era quase 170. Hoje, para as bilionárias companhias de tecnologia da Bay Area essa relação está em modestos 21.

Mas essa relativa sobriedade mascara duas propensões a excessos: as valorizações cada vez mais elevadas atribuídas a empresas de maior porte que permanecem com o capital fechado e o montante de recursos que os investidores põem em seus caixas para que elas dominem suas respectivas categorias de negócios. Ambas as tendências continuarão a ter grande impacto sobre a dinâmica das startups, das companhias de capital aberto e da cidade de São Francisco.

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Impacto repentino. Nunca foi tão fácil abrir uma empresa de tecnologia. Não apenas os custos atualmente são mais baixos, como há mais investidores dispostos a fazer o papel de “anjo da guarda” e distribuir cheques de valor não muito alto para dar asas às ideias dos empreendedores que buscam sua ajuda. É a etapa seguinte que exige nervos de aço e bolsos bem fornidos. A maioria dos empreendedores e dos capitalistas de risco acredita na visão de que os mercados de tecnologia funcionam com base na fórmula “o vencedor leva tudo”. Companhias como o Uber recorrem ao “efeito de rede” para crescer: quanto maior sua presença, mais faz sentido que motoristas e passageiros usem os seus serviços, em vez de optar por concorrentes. Em vista disso, a empresa que se estabelece antes em determinado segmento tem vantagens desproporcionais. “O primeiro prêmio é um carrão. O segundo é um jogo de facas para churrasco. O terceiro é o olho da rua”, explica Stewart Butterfield, presidente da Slack, companhia de software criada há dois anos e avaliada em US$ 2,8 bilhões, citando a peça O Sucesso a Qualquer Preço, de David Mamet. Essa maneira de ver as coisas acaba produzindo um ciclo de retroalimentação positiva. Quanto mais investimentos determinada empresa recebe, maior é o valor a ela atribuído, o que desperta mais interesse da imprensa, coisa que facilita a tarefa de atrair e reter funcionários, que, por sua vez, viabilizam um desempenho melhor que o dos concorrentes, trazendo mais investimentos.

Os investidores se dispõem a aguentar o tranco dos gastos elevados, feitos para conquistar clientes e intimidar concorrentes, numa tentativa de criar o que eles, cochichando baixinho, chamam de “monopólios naturais”. Bill Gurley, do fundo de capital de risco Benchmark, diz que se trata de um “experimento grandioso”. “É uma coisa sem precedentes, dar centenas de milhões de dólares para essas empresas, fazer com que cresçam tanto e dizer a elas que não estamos preocupados com os lucros.” E é um experimento em que todo mundo tem de participar. “Se os seus concorrentes agem como se o capital fosse de graça, como se não tivesse importância, é com essa mentalidade que você tem de se comportar também”, diz Gurley.

Com as startups crescendo mais rápido que nunca, muitas também adiam por mais tempo a hora de abrir o capital. Antes era extremamente raro encontrar uma startup avaliada em mais de US$ 1 bilhão, mas hoje, nos Estados Unidos, o setor de tecnologia abriga 74 “unicórnios” desse quilate, avaliadas em US$ 273 bilhões. Em termos numéricos, são 61% de todos os unicórnios do mundo, segundo a CB Insights, que acompanha o mercado de private equity.

Muitos empreendedores veem a vida das companhias de capital aberto, com suas prestações de contas trimestrais e seus acionistas ativistas, como algo semelhante a estar na pele da gigante efígie de madeira que é construída e depois queimada durante o evento Burning Man, realizado anualmente no Deserto de Nevada: claro, em pouco tempo transformam você no colosso do pedaço, mas você sabe que dali a pouco a coisa vai começar a esquentar para o seu lado. E, hoje em dia, levantar capital sem a ajuda do mercado acionário é de uma facilidade sem precedentes. Com os juros perto de zero, investidores penam para conseguir alguma rentabilidade. Fundos mútuos, como o Fidelity e o T. Rowe Price, investem em unicórnios em estágios avançados de captação, e o mesmo fazem fundos de hedge, fundos soberanos e grandes corporações.

Jogo desleal. Com a maioria das startups esperando mais tempo para abrir o capital, aumenta o interesse em investir mais cedo. Por melhor que tenha sido estar entres os primeiros a pôr dinheiro no Google, na Amazon ou na Microsoft, essas companhias mais antigas criaram o grosso de seu valor depois de abrir o capital, permitindo também a investidores que chegaram mais tarde embolsar uma bolada. Em contraste com isso, o fundo de capital de risco Andreessen Horowitz observa que 40% do valor do site de relacionamentos profissionais LinkeIn foi criado antes de sua IPO, realizada em 2001; no caso do Twitter, toda a criação de valor antecedeu a IPO.

Mark Mahaney, analista do RBC Capital, um banco de investimentos canadense, diz que foi o Facebook que mudou a forma como os investidores pensam sobre preços altos. Criado em 2004, o Facebook levou oito anos para abrir o capital. Em 2007, quando um investimento de US$ 240 milhões da Microsoft pôs a valorização da empresa de mídia social em US$ 15 bilhões, os críticos disseram que era preciso ser muito trouxa para aceitar pagar tão caro por uma fatia do negócio de Mark Zuckerberg. Considerando que o valor de mercado do Facebook hoje está em US$ 276 bilhões, a maioria desses críticos deve estar mordendo a língua.

A falta de outras oportunidades de investimento e o medo de ficar de fora levaram as valorizações das startups-unicórnio a níveis dificilmente justificáveis com base em seu desempenho financeiro. Exemplo: o Pinterest, site que permite aos usuários compartilhar fotos de coisas que eles gostariam de comprar, tem receitas insignificantes, mas é avaliado em US$ 11 bilhões. “Dizemos que são valorizações do ‘mercado de private equity’, mas não chega a ser um mercado propriamente dito. É um punhado de gente otimista” que está determinando esses preços, diz um banqueiro.

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Um capitalista de risco mais cínico acha que muita dessas valorizações se baseiam no “jeitão da coisa”: se ao olhar para determinada empresa a pessoa se convence de que ela lembra vagamente uma outra que já recebeu valorização elevada, é porque deve atribuir à empresa de agora valor semelhante ao que foi atribuído àquela outra. Considere-se, por exemplo, o Snapchat, um serviço de troca de mensagens com mais de 100 milhões de usuários mensais, mas nenhum modelo comprovado de receitas. Pelo “jeitão da coisa”, a empresa lembra o Whatsapp, que foi lucrativamente vendido ao Facebook no ano passado. Isso talvez explique o fato de o Snapchat estar avaliado em US$ 16 bilhões, a despeito das diferenças significativas entre o que as duas empresas oferecem.

Magnum force. Valorizações elevadas obviamente implicam riscos para os investidores. Ao entrar em novos mercados, as empresas de tecnologia muitas vezes enfrentam incertezas regulatórias. O Uber, por exemplo, anda às turras com órgãos reguladores de boa parte do mundo e corre o risco de ser obrigado a tratar alguns de seus motoristas como empregados, e não como autônomos, o que afetaria negativamente seu enxuto modelo de negócios. O Homejoy, um serviço de limpeza doméstica financiado por capitalistas de risco, anunciou que fechará as portas no fim de julho por conta de ações judiciais que discutem se seus faxineiros devem ser considerados empregados ou prestadores de serviços.

O que não é tão óbvio é o efeito negativo que as valorizações podem ter para as próprias empresas-unicórnio. Se, desesperado para entrar para o clube dos “dez dígitos”, um jovem empreendedor aceita uma supervalorização, está correndo o risco de enfrentar um “rebaixamento” - uma avaliação que jogue o valor da empresa para baixo no momento em que ela estiver precisando de mais investimentos ou em que for abrir o capital. Isso mancha a reputação do sujeito. E hoje a Bay Area é um lugar em que se dá muito valor à reputação das pessoas. Em 1999, a grande mídia estava começando a prestar atenção no Vale do Silício; atualmente, a cobertura é intensa. “Hoje em dia, esses caras de tecnologia se comportam como se fossem estrelas de Hollywood”, diz Randy Komisar, do fundo de capital de risco Kleiner, Perkins, Caulfield & Byers. “Vivem fazendo pose para as câmeras.”

Algumas empresas-unicórnio cresceram tanto que caíram na “armadilha da valorização”: são caras demais para despertar o interesse de gigantes como Facebook, Google ou Apple, mas ao mesmo tempo não têm como se aventurar sozinhas no mercado acionário apenas com base no que dizem valer. O fato de que as altas valorizações estejam tão generalizadas também dificulta que elas se devorem umas às outras a fim de aliviar a pressão concorrencial que as obriga a gastar tão prodigamente. Pelo menos uma proposta de fusão entre unicórnios do mesmo segmento de atividade acabou não se concretizando por conta do ritmo em que suas valorizações aumentavam durante as negociações.

Outro problema causado pelo investimento entusiástico em empresas jovens é a pressão salarial. A disputa por profissionais qualificados “nunca foi tão acirrada como agora”, diz o proeminente capitalista de risco Jim Breyer. O salário de um engenheiro de softwares médio em São Francisco está em US$ 150 mil ao ano, segundo a Glassdoor, banco de dados com ofertas de empregos e avaliações de empresas feitas por funcionários e ex-funcionários. No seriado Silicon Valley, da HBO, a startup Pied Piper está tão desesperada em busca de um bom engenheiro que se dispõe a oferecer o emprego a um sujeito que diz ser um cyborg. Mas acaba sendo esnobada, pois há uma porção de outras empresas interessadas em contratá-lo. É o tipo de exagero com um grão de verdade que torna o programa tão popular entre a turma de tecnologia de São Francisco quanto Sex and the City era entre as mulheres de Nova York.

Uma questão polêmica no tocante à contratação de pessoal são as ações que as startups oferecem a seus novos empregados. O valor delas é fixado por auditores externos, mas o apelo de ações com baixo valor, maximizando as chances de lucro para o funcionário, leva algumas empresas a tentar garantir subavaliações. Companhias de capital aberto não podem fazer esse tipo de jogo. Muitos funcionários já se deram conta disso e entenderam a arbitragem que precisam fazer na hora de decidir entre trabalhar para uma startup e para uma empresa com ações listadas em bolsa. “Wall Street costumava ser o único lugar onde havia lucro sem valor”, diz o presidente de uma empresa de tecnologia de capital aberto. “Agora é possível que isso esteja acontecendo no Vale do Silício.”

O setor de tecnologia começa a parecer com Wall Street também em outros aspectos. Jovens ambiciosos e cheios de si que antes queriam trabalhar em bancos, agora preferem procurar emprego em companhias de tecnologia. “As oportunidades de ganhos são maiores, o expediente não chega a ser mais desgastante e a economia caminha na direção da tecnologia”, diz Jon Bischke, da Entelo, companhia de software que auxilia empresas na contratação de pessoal. E o setor não atrai apenas os que acabam de sair da faculdade: em alguns círculos, o Uber é conhecido como o “Goldman do Oeste”, por conta da grande proporção de funcionários oriundos do setor financeiro. Num momento em que Wall Street se vê submetida a normas que impedem o pagamento de bônus excessivamente generosos, o Vale do Silício ainda está em condições de atrair gente talentosa com ofertas espetaculares, como o Google sem dúvida fez recentemente ao tirar Ruth Porat do Morgan Stanley e transformá-la em sua nova diretora financeira. Anthony Noto, diretor financeiro do Twitter e ex-executivo do Goldman Sachs, teve remuneração superior a US$ 70 milhões no ano passado.

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A última linha. A reação a esse tipo de excesso ainda não alcançou a dimensão atingida pelo movimento Occupy Wall Street pouco depois da eclosão da crise financeira, mas, principalmente em São Francisco, o ressentimento vem aumentando. Nos anos 90, a maior parte das atividades do segmento de tecnologia se concentrava em Palo Alto, Mountain View e no próprio Vale do Silício, que ainda é onde a maioria das grandes empresas de capital aberto da região está sediada. Atualmente, as startups tendem a se instalar mais perto da cidade. As sedes de Uber, Dropbox, Pinterest e Airbnb são todas lá. Jovens programadores que trabalham em companhias localizadas mais ao sul, preferem morar na cidade e fazer o trajeto diário até o trabalho em luxuosos ônibus fretados. Com isso, os preços dos imóveis dispararam. Bairros antes acessíveis, como Soma e Mission, foram invadidos por engenheiros e empresários, expulsando de lá muita gente que cresceu em suas ruas.

O mercado de salas comerciais está tão aquecido quanto o residencial. Companhias de capital de risco que antes se contentavam com um lugar na Sand Hill Road, em Palo Alto, que corre ao longo de uma das laterais do câmpus da Universidade de Stanford, abriram escritórios em São Francisco para ficar perto dos empreendedores jovens e urbanos que acham o Vale muito distante e aborrecido. Os aluguéis subiram tanto - considerando a cidade de São Francisco como um todo, o metro quadrado teve valorização de 30% desde 2010 - que algumas empresas que quebraram acabaram reavendo boa parte dos prejuízos com a valorização de suas salas comerciais. Como aconteceu durante a bolha pontocom, as startups fecham contratos de locação por áreas que excedem em muito suas necessidades, a fim de garantir espaço para uma futura expansão aos preços elevados de hoje, e não aos preços estratosféricos de amanhã. Quem acha que o mercado imobiliário está complicado hoje, que espere para ver como vai ficar quando um número maior de empresas sediadas em São Francisco abrir seu capital, diz Naval Ravikant, do AngelList, site que ajuda startups a captar recursos.

Tão certo quanto o sol se põe ao fim de cada dia, vai chegar a hora em que o setor de tecnologia de São Francisco será vítima de desaceleração. Uma elevação nas taxas de juros pode diminuir o entusiasmo dos investidores com as empresas de tecnologia, pois poderão obter rentabilidades mais elevadas em outros lugares. Algumas bem conhecidas startups-unicórnio podem ir à lona, inviabilizando a captação de recursos por outras startups. Uma sucessão de “rebaixamentos” nas valorizações do segmento pode afugentar os investidores.

Mas a correção não se parecerá com a de 2000. Não será tão indiscriminada, nem tão profunda, nem tão repentina. São muitas as grandes empresas de tecnologia que permanecem com o capital fechado, e isso significa que elas terão mais tempo para se adequar à correção do mercado do que tiveram as empresas de tecnologia naquela época. Seus investidores podem ajustar o valor contábil dos investimentos aos poucos, como fizeram os fundos de private equity durante a crise financeira de 2008. No estouro da bolha pontocom, muitas companhias viram seu valor ser reduzido a zero. É possível que muitas empresas também estejam sobrevalorizadas agora, mas são poucas as que não valem nada.

Muitas das empresas-unicórnio se ergueram sobre negócios sólidos e serão capazes de aguentar as pontas se o mercado se voltar contra elas. De fato, algumas delas estão captando recursos para ter mais dinheiro em caixa, em caso de necessidade. “Eu perguntei para as pessoas do conselho como deveria me preparar para enfrentar o inverno”, diz Butterfield, da Slack. “A resposta foi: dinheiro em caixa. Não há como estocar boa vontade.” Segundo o empresário, a Slack tem “centenas de milhões de dólares no banco” e está perto de atingir o break-even (ponto de equilíbrio entre lucros e custos). Muitas outras empresas-unicórnio dispõem de recursos que podem lhes servir como colchão em tempos adversos. A Palantir, que atua na área de análise de dados, tinha US$ 1 bilhão em caixa no fim do ano passado.

Altas e baixas fazem parte da história do Vale do Silício e da própria Califórnia, em termos mais gerais. Mas a influência do Vale do Silício sobre o futuro dos consumidores e do próprio capitalismo veio para ficar. A região se tornou um centro de negócios e de empreendimentos, um reino de criatividade, um campo para a exploração de ideias extraordinárias e amalucadas, e assim permanecerá. Mas os geeks e sonhadores que povoam o Vale terão de aprender a navegar tanto em águas calmas, como em águas revoltas. Alguns tentarão ir muito alto e acabarão desaparecendo na baía. Outros serão arrastados por ventanias. Mas muitos retornarão em segurança à praia - só para entrar de novo na água à procura de uma nova emoção, de um novo desafio, de um novo futuro.

© 2015 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. TRADUZIDO POR ALEXANDRE HUBNER, PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM

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