Até há pouco tempo, ninguém questionava que o controle do grupo Pão de Açúcar passará para o Casino no próximo ano, mas os desentendimentos tornados públicos entre os dois sócios lançam incertezas sobre o negócio e uma brecha legal no acordo de acionistas pode ampliar as dúvidas sobre até que ponto o acordo será cumprido.
Nem Casino nem Pão de Açúcar falam sobre essa brecha legal, mas advogados preveem que, se a família Diniz não quiser ceder o controle, a disputa acabará em um processo arbitral, que, embora mais rápido do que a Justiça, pode durar até três anos.
Desde 2005, a família Diniz e o grupo francês acertaram a venda do controle e celebraram um acordo de acionistas assinado em 27 de novembro de 2006 que estipula regras entre as duas partes. Para abrigar os dois sócios, foi criada a empresa Wilkes, com 50% de participação cada. De acordo com o documento, Abilio Diniz terá de vender no ano que vem uma ação de controle para o Casino, o que garantiria ao grupo francês ter 50% mais uma ação. E o Casino Já declarou que vai comprar.
Na estrutura organizacional do grupo, a Wilkes fica acima da Companhia Brasileira de Distribuição (CBD), que por sua vez controla todas as empresas do grupo Pão de Açúcar, incluindo as novas aquisições, como Ponto Frio e Casas Bahia.
Caso a família Diniz não cumpra a obrigação de vender a ação ao Casino, o grupo francês tem um mandato de procuração para realizar o negócio. Ou seja, Abilio Diniz dá ao Casino uma procuração para que ele realize a compra independentemente de sua iniciativa.
Esse mandato de procuração é um mecanismo bastante usado em negócios entre empresas, podendo ser irrevogável ou não. Embora na cláusula IV, do artigo 9.2.1, do acordo, onde é prevista a procuração, esteja especificado que o mandato é irrevogável, há uma brecha para a revogação desse mandato. Com isso, abre-se a possibilidade de a família Diniz não vender a ação que dará o controle ao Casino, tendo de pagar apenas perdas e danos.
São mencionados no acordo de acionistas dois artigos do Código Civil Brasileiro, o 660 e o 683, ambos referentes ao mandato de procuração. O primeiro é apenas o princípio geral e o 683 prevê que, "quando o mandato contiver a cláusula de irrevogabilidade e o mandante o revogar, pagará perdas e danos".
Um advogado que preferiu não ter seu nome publicado e analisou o acordo de acionistas da Wilkes a pedido da Agência Estado afirma que "o uso deste artigo claramente permite que Abilio Diniz não passe o controle para o Casino". Segundo ele, o artigo que deveria ter sido usado neste caso era o 684, que diz que a revogação do mandato é ineficaz.
Arbitragem. É claro que, como tudo no Direito, se Abilio Diniz optasse por usar essa brecha legal, o Casino teria argumentos para questioná-lo em processo arbitral e o ganho da causa dependeria do entendimento da câmara. Também existem outros acordos entre as partes, a maioria confidenciais, que podem influenciar na decisão. A Agência Estado analisou esse de 27 de novembro de 2006 por ser o objeto da arbitragem aberta pelo Casino.
Se não houvesse nenhum ruído no relacionamento entre os dois sócios, ninguém imaginaria a possibilidade de a família Diniz optar por não vender a ação e iniciar o conflito. Mas a abertura do processo de arbitragem pelo Casino e a notícia de que Abilio Diniz conversou com o concorrente Carrefour sem avisar o sócio lançaram dúvidas no mercado sobre o grau de conflito entre eles. As informações publicadas sobre o processo são genéricas e não deixam claro o que o Casino está pedindo na arbitragem.
A questão é o caminho que tomará essa arbitragem. Como em briga de casal, os sócios podem se entender ou podem partir para o divórcio. Na primeira opção, é claro que a família Diniz venderia a ação de controle ao Casino sem questionamentos. Afinal, é o que está acertado desde 2005. Na segunda alternativa, porém, poderia alegar quebra de confiança e revogar o mandato de procuração, levando o caso para arbitragem.
Irrevogabilidade. A advogada Andrea Seco, sócia responsável pelo contencioso civil do escritório Almeida Advogados e pós-graduada em processo civil, diz que, "quando as partes contratantes querem uma garantia mais firme do negócio, devem ter o cuidado de prever a irrevogabilidade do mandato de procuração, e citar expressamente o artigo 684 do Código Civil", ausente neste caso.
A advogada concordou em falar à reportagem desde que fosse ressaltado que ela está analisando apenas a legislação e a prática genérica de acordos entre empresas - ou seja, falando em tese, como se usa no jargão do direito.
"O mandato de procuração exige uma relação de confiança, por isso, existe a previsão de revogá-lo mediante o pagamento de perdas e danos (artigo 683) mesmo quando está expressa a cláusula de irrevogabilidade", explica o advogado André Osório Gondinho, especialista em direito civil e sócio do escritório Dória, Jacobina Rosado e Gondinho Advogados, fazendo a mesma ressalva que está falando em tese. Embora os dois advogados concordem que existe a brecha legal, acreditam que a não venda da ação ainda pode render "uma boa briga", como classifica Andréa Seco.