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Por Iuri Dantas
Atualização:

Alguns mudanças drásticas exigem revolução. Outras, o voto. Em alguns casos, basta o despertar de uma nova consciência coletiva. Muitas vêm aos poucos, lentamente, passo a passo, uma longa interseção entre o novo e o velho. Até que um dia surpreendem: o passado já não existe mais. Deu-se assim com a política fiscal do governo federal.

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Até outro dia, era regra uma tal de Lei de Responsabilidade Fiscal. De nome simples, a peça tinha um objetivo cristalino: reduzir o ímpeto que todo chefe de Executivo tem de gastar aos borbotões o dinheiro obtido com os altíssimos impostos que pagamos por aqui. A linha mestra da LRF, que não a resume totalmente, proibia aprovação de gastos sem previsão no Orçamento. Quisesse o governante desembolsar os tostões, deveria criar imposto ou cortar despesas.

Parecia bom demais para ser verdade. Afinal, ficava subentendido ali que o objetivo do governante deveria ser conter despesas públicas, na maioria dos casos altíssimas e ineficientes.Ou arcar com o dissabor de baixar novo tributo no pobre do eleitor e receber o troco ali na frente. Bem, na teoria foi assim. Até a chegada de Dilma Rousseff ao comando da economia nacional.

Lentamente, com um pacote aqui e uma medida provisória ali, o Palácio do Planalto foi esgarçando as regras, tratando cada mudança como pontual e benéfica para o País. O mercado financeiro fez as contas simples, como de costume. Se o governo gasta cada vez mais e essas despesas pressionam a inflação, um bom negócio seria apostar que o Banco Central subiria mais os juros para segurar os preços. Uma consequência que não interessa para ninguém.

Trinta e cinco meses depois de subir a rampa do Planalto, Dilma acumula diversos exemplos de fragmentação na área fiscal. Dois deles ajudam a entender a história. Primeiro, o governo resolveu cortar impostos para estimular o crescimento da economia. Escolheu setores econômicos a dedo e distribuiu cortes de IPI para uns e desonerou totalmente de tributos alguns outros. A economia, desnecessário dizer, não deslanchou até agora.

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Esses cortes de impostos foram, em sua imensa maioria, determinados por medida provisória. Trata-se de um texto do Executivo que entra em vigor imediatamente e ainda dá ao Congresso a chance de embutir emendas aumentando as despesas. O Tribunal de Contas da União chiou. Motivo: o governo sequer dizia de onde sairia o dinheiro para tapar o rombo. Defendia que a arrecadação de impostos sempre ficou mais alta do que o previsto no Orçamento. A ideia era usar a folga de dinheiro a mais para acomodar os cortes de tributo. Na letra fria da LRF, abrir mão de receita de impostos equivale a fazer gastos. Cria-se um buraco que precisaria ser preenchido. Os técnicos do TCU passaram meses negociando com a equipe do genovês Guido Mantega, que responde pelo Ministério da Fazenda. Sem muito resultado. O TCU resistiu e o governo tenta acabar com essa previsão da LRF.

Depois disso, vieram mais e novos cortes de impostos. Bilhões de reais, sem exagero. Mas sem o devido acompanhamento. Consta que Mantega sequer recebia da Receita Federal uma avaliação precisa de quanto deixaria de entrar no cofre. Eram contas na ponta do lápis, de seus assessores. A caravana segue.

Outro exemplo interessante vem do setor elétrico, aquele que elevou a ex-pedetista Dilma Rousseff ao posto de ministra de Minas e Energia. No ano passado, a presidente foi à TV e presenteou o País com um corte na conta de luz. Em vez de aguardar o fim dos contratos de usinas, o governo anteciparia a renovação e a reboque garantiria um desconto para a sofrida indústria e o coitado do contribuinte. Mas não foi bem isso que aconteceu.

O desconto saiu caro, porque o mundo real seguiu caminho diferente do previsto nos gabinetes de Brasília. Foi preciso acionar usinas térmicas com a seca e a baixa nos reservatórios das hidrelétricas. Isso custa muito dinheiro. Bilhões de reais, sem exagero. Além disso, algumas empresas não concordaram com os termos propostos por Dilma inviabilizando a engenharia financeira elaborada pelo Planalto. Por respeitar contratos, a presidente rangeu os dentes e viu a conta subir.

Por opção própria, em vez de cortar despesas, o governo decidiu antecipar receitas da usina binacional de Itaipu dos próximos anos para fechar a conta. Não pegou bem. Ao recuar, o governo comemorou que pagaria a fatura do desconto na tarifa de energia como "despesa primária". Ok. Na verdade, significa ir ao mercado e vender papéis da dívida para investidores, que cobram mais caro para financiar a festa justamente porque o governo não corta gastos. Uma hora a conta sempre chega. Pressão sobre a dívida.

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Vá lá, um terceiro exemplo. Depois de promover "ajustes" nas dívidas estaduais, de criar uma linha especial do BNDES para os Estados se endividarem mais ainda... Bem, ontem Dilma pediu ao Congresso para acabar com a obrigação do governo federal de compensar o esforço fiscal frustrado de Estados e municípios.

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Isso tudo sem falar no Minha Casa Melhor, que destina R$ 50 bilhões para a compra de eletrodomésticos aos mutuários do Minha Casa Minha Vida. Bilhões de reais, sem exagero. E sem falar, ainda, no expediente de contabilizar como parte da poupança para pagamento de juros da dívida o dinheiro que o governo abriu mão com as desonerações. Sim, parte do esforço fiscal reside no fato de que o governo não vai receber dinheiro do contribuinte.

Juros mais altos e mais endividamento são, neste caso, consequências diretas da forma como o governo conduz a política econômica e os gastos públicos. Para evitar isso, o País conquistou a Lei de Responsabilidade Fiscal. Deu certo por algum tempo. Todo mundo acreditava. Agora, Dilma tenta substituir o rigor da lei pelo empenho de sua palavra. Dita e escrita no Twitter. O governo promete que vai cumprir as metas fiscais, que manterá a dívida sob controle, que não deixará o Congresso aprovar novas despesas ou cortes de impostos. Nas palavras do genovês, são tempos de vacas magras. Todos de acordo, mas andaram matando o pasto sem necessidade e o prejuízo está aí. Na casa dos bilhões de reais. Sem exagero.

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