PUBLICIDADE

Crônica para Carl Sagan

O mundo perdeu em 1996 um dos maiores astrônomos de todos os tempos. Por sua cultura humanista e sua incrível capacidade de comunicação, Carl Sagan era lido e admirado em todo o mundo. Deixou mais de 20 livros publicados e a série de TV Cosmos, ainda atualíssima.

Por Ethevaldo Siqueira
Atualização:

Tenho afirmado a amigos e alunos que um dos privilégios da profissão de jornalista é conhecer pessoas incomuns, líderes, cientistas, inventores ou artistas geniais. Se me pedem para escolher ao acaso a personalidade que mais me impressionou ao longo de meus 43 anos de jornalismo, a primeira figura que me vem à lembrança é Carl Sagan, o grande astrônomo norte-americano, falecido em 1996, aos 61 anos. Nunca vi ninguém mais apaixonado pela ciência, pela vida e pelo universo. Nele, o que mais me fascinava era sua vasta cultura e, em especial, sua capacidade de comunicação, que lhe permitia explicar as coisas mais complexas, de maneira tão clara e interessante.

PUBLICIDADE

Conheci-o nos anos 1970, quando cobria os Projetos Apollo, Space Shuttle e Voyager, nos Estados Unidos, com um grupo de jornalistas, e ele nos dava aulas de astronomia e, em especial, sobre o Sistema Solar. Foi nessa época que ele concebeu o livro Cosmos, transformado em 1980 em uma série de TV de grande sucesso em todo o mundo. Em uma de suas palestras, provoquei-o, com o tema recorrente do conflito entre tecnologia e humanismo, pedindo-lhe que me falasse sobre as duas atitudes extremas - de deslumbramento ou pavor - com que as pessoas reagem diante das maravilhas tecnológicas.

"Por maior que seja nosso entusiasmo pela tecnologia - disse Sagan -precisamos buscar o equilíbrio. Em latim, diríamos: In medio virtus (a virtude está no meio). Deslumbramento leva à perda do senso crítico. Pavor pode virar sentimento irracional. O que importa, da forma mais pragmática, é saber retirar da tecnologia tudo que ela nos pode dar de bom." 

Em uma exposição que fez sobre os registros que seriam levados ao espaço pelas sondas Voyager I e II, lançadas em 1977, Sagan mostrou o conteúdo daquelas duas sondas, que seriam (como efetivamente foram) os primeiros artefatos criados pelo homem a ultrapassar os limites do Sistema Solar e perder-se no espaço cósmico. Por isso, a NASA decidiu abastecê-las com um conjunto de objetos com o máximo de informações sonoras e visuais sobre a Terra e a humanidade naquele momento: num projeto que tinha o título de Registro da Voyager (Voyager Record). Para quê? Para a hipótese de, um dia, no futuro mais remoto, as sondas Voyager serem encontradas e recolhidas por um eventual navegante cósmico extra-terrestre.

Imagine, leitor, que cada sonda levava um conjunto de: 118 fotos, saudação do presidente dos Estados Unidos, a lista dos congressistas dos Estados Unidos (ah, os políticos), saudação do secretário-geral das Nações Unidas, saudações de paz feitas em 54 idiomas, saudações da Organização das Nações Unidas (ONU), canto gravado de uma baleia, sons da Terra (12 minutos de gravações de grande variedade de sons, choro de criança, canto de pássaros, buzinas de carro, estrondos de canhões e de trovões e outros) e, finalmente, música (com trechos de Bach, Mozart, Beethoven e outros compositores clássicos, música popular de vários povos). 

Publicidade

Com esse conteúdo do Registro da Voyager, Carl Sagan coordenou a publicação de um livro chamado Murmúrios da Terra (Murmurs of Earth) com outros colaboradores. Em uma palestra, em Pasadena, no Jet Propulsion Lab (JPL), em 1976, o grande astrônomo fez a nós, 12 jornalistas que iriam cobrir o lançamento da primeira sonda, uma de suas mais fascinantes palestras. Nunca vi ninguém mais eclético, com uma visão tão ampla do desenvolvimento científico humano, de sua cultura e de sua história.

Entre os mais de 20 livros que escreveu, recomendo com entusiasmo Os Dragões do Éden (pelo qual recebeu o prêmio Pulitzer de Literatura), Pálido Ponto Azul e O Mundo Assombrado pelos Demônios.

Nestes feriados da semana santa, decidi rever alguns trechos da série Cosmos, que guardei, em 5 DVDs. Logo no primeiro disco, me senti como se estivesse viajando pelo Universo ao lado de Carl Sagan, naquela nave imaginária, que voava com a leveza da flor de dente-de-leão, num passeio cósmico de milhões de anos-luz. Que pena que o mundo não tenha hoje outro astrônomo capaz de nos mostrar, ao mesmo tempo, tanta beleza e tanta grandeza no Universo. Embora fosse ateu, eu tenho certeza de que ele já descobriu Deus e está viajando, deslumbrado, pelo Universo neste momento.

Um grande abraço, Carl.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.