A corrente de analistas mais otimista em relação à transição da economia chinesa diz que agora é o momento de olhar para o que está acontecendo no setor de serviços do país asiático. Segundo editorial da agência de notícias oficial Xinhua News, que considera "completamente desnecessárias" as preocupações do mercado com a atual crise nas bolsas chinesas, "apesar do fraco desempenho da indústria e do mercado imobiliário, o rápido crescimento do setor de serviços está se tornando o novo ponto alto da economia chinesa".
O economista Stephen Roach, de Yale, e ex-chairman do Global Stanley na Ásia, nota que está ocorrendo na China "uma transferência estrutural da indústria e da construção para o setor de serviços". Em 2014, os serviços já eram 48,2% do PIB, comparados a 42,5% do setor secundário, e a mudança continua a ocorrer, já que o ritmo de crescimento de cada setor no primeiro semestre de 2015 foi de, respectivamente, 8,4% e 6,1%.
Esse processo é parte essencial da transição de modelo econômico que as autoridades chinesas vêm tentando empreender. O país foi palco nos últimos 30 a 40 anos do maior episódio de crescimento econômico e de redução de pobreza da história humana, graças à acelerada transferência de trabalhadores da agricultura tradicional para a indústria, num modelo baseado no investimento e na exportação de produtos manufaturados. Como nota Roach, a população urbana saltou de menos de 20% em 1978 para 55% hoje e deve atingir o nível entre 65% e 70% nos próximos 15 anos.
Agora, segundo o economista, a expansão dos serviços é a etapa natural de criação da infraestrutura de uma verdadeira sociedade de consumo, com serviços públicos, comunicações, varejo, saúde, serviços financeiros, etc. Como os serviços são intensivos em mão de obra, a economia chinesa desacelera-se mais a criação de empregos continua forte.
O economista Lívio Ribeiro, especialista em China do Ibre/FGV, concorda com a análise de Roach, mas acrescenta que agora há um problema de acompanhamento e interpretação do que está ocorrendo no país asiático. Por muito tempo, os analistas acostumaram-se a ler a situação chinesa a partir dos indicadores industriais, de comércio exterior e de construção civil. Ribeiro observa, por exemplo, que a divulgação que deu início ao atual episódio de mau humor foi uma prévia do índice do índice de confiança da indústria - e considera que a reação foi exagerada.
O problema de acompanhar o setor de serviços, prossegue, é que as séries são relativamente recentes e os analistas não estão habituados a segui-las e interpretá-las. "A mudança de modelo vai exigir também uma transição da análise da China, desviando em parte o foco do setor secundário para o terciário", diz Ribeiro.
Mas há riscos na transição em si, como o próprio Roach - um dos analistas tradicionalmente mais otimistas sobre a China - deixa claro em seu artigo. Ele nota que as autoridades chinesas estão tentando gerir muitas mudanças ao mesmo tempo - modernização do sistema financeiro, internacionalização do yuan, controlar as bolhas acionárias, imobiliárias e de crédito, combater corrupção e implementar uma política internacional mais nacionalista e assertiva.
Roach não diz diretamente, mas é evidente que o sistema político autoritário, se por um lado dá uma margem de manobra que a China não teria se fosse democrática, por outro pode criar dificuldades em se lidar com uma sociedade de consumo afluente e plena de demandas. E é evidente que manter um ritmo vigoroso de crescimento, mesmo que bem menor do que o da fase recente de boom econômico, é fundamental para garantir o suporte social ao governo num regime político fechado.
Analistas mais otimistas como Roach e Ribeiro não veem ainda sinais de "hard landing". O economista do Ibre nota que a queda das bolsas é a devolução de altas injustificadas iniciadas no final do ano passado, e acredita que a China deve crescer este ano 7% ou quase isto. Por outro lado, a complexidade crescente da agenda de modernização chinesa - como nota Roach - cria dificuldades também crescentes para o governo.
Segundo Ribeiro, por exemplo, que o corte de juros anunciado ontem (25/8/15) é um estímulo ao chamado "shadow banking", o sistema financeiro paralelo que oferece retornos mais condizentes com os fundamentos de mercado. Já a redução de compulsório é mais adequada, na sua visão, porque com saída de capitais não há necessidade de esterilização financeira.
Existe de fato entre as elites governamentais e acadêmicas da China um grande receio de que o País falhe na tentativa de continuar se desenvolvendo do atual patamar para o nível dos países mais adiantados - é a chamada "armadilha de renda média". Em recentes contatos de acadêmicos de uma importante instituição chinesa com colegas brasileiros, ficou muito claro que os representantes da China veem a América Latina e o Brasil como um importante contraexemplo de países que não conseguiram superar a armadilha da renda média.
Mesmo que os eventos dos últimos dias não sejam o início da grande crise chinesa que alguns vem prevendo há anos, a transição de modelo deve prosseguir como um processo difícil e sujeito a surtos de turbulência e pessimismo. Para países exportadores de commodities como o Brasil, que dependem crucialmente da continuidade do crescimento chinês, esta é mais uma dificuldade a enfrentar nos anos à frente. (fernando.dantas@estadao.com)
Fernando Dantas é jornalista da Broadcast
Esta coluna foi publicada pela AE-News/Broadcast em 25/8/15, terça-feira.