Fernando Dantas
04 de junho de 2020 | 19h38
As manifestações contra Bolsonaro no último fim de semana foram um sinal que não passou despercebido por cientistas políticos. Mesmo com a pandemia, que inibe movimentos populares mais maciços, os insatisfeitos com o atual governo começam a mostrar sua força.
Ainda é prematuro se falar em impeachment, segundo os especialistas ouvidos nessa coluna, mas a posição do presidente está se fragilizando.
Carlos Pereira, cientista político da Ebape/FGV, no Rio, diz que “a sociedade resolveu acordar”.
Ele nota que sair de casa para a rua tem um custo, ainda mais durante uma pandemia. Assim, normalmente, as pessoas tendem a confiar nas instituições para garantir que fundamentos da sociedade, como a democracia, sejam preservados.
“Se as instituições estão dando conta do recado, as pessoas ficam e casa; quando elas saem é porque percebem que há uma ameaça”, diz o pesquisador.
Para ele, Bolsonaro radicalizou e está indo aos extremos para fidelizar seu núcleo mais fiel de seguidores, fazendo com que as instituições que podem conter o presidente sofram um “bombardeio”. É a percepção de boa parte da sociedade de que esse aparato institucional necessita de apoio que começou a colocar as pessoas na rua.
Segundo Pereira, reações do governo mostram que ele sentiu o golpe. O cientista político se refere aos ataques aos manifestantes pelo presidente, que os classificou de terroristas, e ao artigo do vice-presidente, Hamilton Mourão, no Estadão, que liga o movimento anti-Bolsonaro à delinquência e ao “extremismo internacional”.
Fernando Abrucio, cientista político da EAESP/FGV, vê essa reação crescentemente destemperada de Bolsonaro aos brasileiros que a ele se opõem como uma perigosa armadilha para o presidente.
“O maior risco para Bolsonaro não reside no STF nem no Congresso, mas na própria reação do presidente às manifestações contra ele”, diz Abrucio.
O pesquisador acha que a ida às ruas de manifestantes contra Bolsonaro tende a aumentar, mas o ritmo em que isso vai acontecer permanece uma questão em aberto.
Razões para sair de casa não faltam. As pesquisas indicam que quase 50% dos eleitores rejeitam o governo Bolsonaro, enquanto o apoiam algo entre 25% a 32% (a depender do instituto). Os que consideram o governo “regular”, isto é, que estão no meio do caminho, vem diminuindo.
Segundo Abrucio, pesquisas qualitativas revelam que a rejeição à Bolsonaro é profunda, e os eleitores que consideram o seu governo ruim e péssimo dificilmente serão reversíveis.
Há a pandemia, com uma conta de mortos que já ultrapassou 30 mil e pode crescer muito mais, e há a feroz recessão.
A estratégia do presidente tem sido a de agitar nas ruas a sua base fiel em todos os fins de semana, mas, como nota o cientista político, essa atitude se torna cada vez mais irritante para a maioria dos brasileiros que não gostam dele. Junto com os ataques às instituições e a falta de empatia pelos mortos da pandemia, tem-se uma combinação que inflama cada vez mais os antibolsonaristas.
Assim, Bolsonaro sofre não só de desaprovação, mas também de repúdio, que é um sentimento muito mais mobilizador.
Para Abrucio, esse sentimento antibolsonarista está longe do pico, e deve continuar a crescer nos próximos dois meses. Não é algo que dependa da oposição política, e, como em 2013, é um movimento sem dono e que ainda pode assumir as mais variadas configurações – como mostra o caráter extremamente variados dos manifestos anti-Bolsonaro e a favor da democracia que têm surgido nas últimas semanas.
A reação do governo de levantar a bandeira da “ordem” contra os “baderneiros” e de partir para o confronto é a pior possível para os interesses do próprio presidente, avalia o pesquisador.
Os sinais de insensatez dessa estratégia estão por toda a parte. Em 2013, no Brasil, foi a reação inicial de alguns governadores, e deu no que deu. Até em termos internacionais, a reação quase puramente repressiva de Donald Trump aos protestos e distúrbios pela morte de George Floyd em poder da polícia só fez aumentar a tensão social e as manifestações nos Estados Unidos.
Com pandemia e depressão econômica generalizadas, os nervos estão à flor da pele no mundo todo, e ações destemperadas de governos podem se o equivalente a jogar gasolina na fogueira.
Dessa forma, na visão de Abrucio, qualquer incidente mais sério em alguma manifestação, provocado por uma repressão de mão pesada das forças policiais, pode ser a fagulha para que os protestos incipientes se transformem em manifestações maciças contra o governo, que poderiam acelerar um eventual processo de impeachment.
O cientista político não vê os militares reprimindo uma grande passeata de 100 mil ou mais pessoas na Avenida Paulista ou na Candelária.
“Hoje todo mundo filma tudo e é impensável o Exército se arriscar a matar gente jovem para as TVs do mundo inteiro, onde o Brasil já virou um pária”, ele diz.
Para Abrucio, pensar em impeachment agora é prematuro: “É uma outra etapa”.
De forma esquemática, ele traça dois cenários bem distintos.
O primeiro é aquele em que Bolsonaro e seu governo teriam a sensatez (pouco provável, claro) de deixar os movimentos de rua seguirem seu curso, evitando confrontar e aumentar a temperatura.
Nesse cenário, o timing e a dimensão final que tomarão os movimentos é difícil de prever. Congresso e Judiciário não estão com a menor disposição de agir para depor o presidente agora, no olho do furacão da pandemia e da crise econômica. A insatisfação continuará a grassar, mas se vai se transformar num movimento de massa é imponderável.
Se os outros Poderes tentassem um impeachment mais “institucional” contra Bolsonaro, Abrucio crê que os militares fariam pressão contrária, mas nada perto de fechar o Congresso ou o Judiciário.
Se, porém, a reação destemperada do governo às manifestações acender uma agulha suficientemente forte, tudo muda. Nesse caso, um impeachment a partir das ruas seria muito mais potente contra Bolsonaro, que não teria qualquer apoio da mídia e da comunidade internacional – como ocorria em golpes do passado.
Para Abrucio, as Forças Armadas tentarem intervir num cenário desses seria equivalente a cavar suas próprias “Malvinas”.
“Uma coisa é reclamar do STF, outra coisa é ir até a Cinelândia e atirar contra 100 mil pessoas”, sintetiza o cientista político.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 4/6/2020, quinta-feira.