Fernando Dantas
11 de fevereiro de 2021 | 16h01
O superpacote de estímulo fiscal proposto por Joe Biden nos Estados Unidos, de R$ 1,9 trilhão, está levantando preocupações. Dois economistas top de linha, reconhecidos influenciadores de política econômica tanto dos Estados Unidos quanto global, o americano Lawrence Summers e o francês Olivier Blanchard, estão entre aqueles que ficaram apreensivos.
Que Summers e Blanchard se preocupem com o pacote fiscal de Biden é significativo. Ambos estiveram à frente, nos últimos anos, da corrente a favor de potentes estímulos fiscais para tirar as economias ricas do marasmo econômico desde a grande crise global de 2008 e 2009.
O temor quanto ao pacote de Biden é de inflação. A pandemia já levou a taxa básica de juros norte-americana a praticamente zero e foram lançados pacotes trilionários de ajuda a trabalhadores e empresas. O canhão de mais de US$ 1,9 trilhão vem em cima de tudo isso.
Num instigante artigo no site VOX EU, o economista francês Jean-Pierre Landau, que trabalhou no BC francês e no FMI (como representante da França), nota que a preocupação de Summers e Blanchard é compreensível diante da perspectiva de que, com o pacote de Biden, os Estados Unidos caminhem para um hiato positivo do produto de 14% do PIB. Isto é, a economia funcionando 14% acima dos seus recursos de trabalho e capital.
É evidente que essa é, em princípio, uma situação de risco inflacionário.
Mas Landau contrasta a posição de Summers e Blanchard com a de Paul Krugman, prêmio Nobel de Economia. Krugman dá muito peso às expectativas de inflação que embasam longos “regimes” monetários.
A ancoragem das expectativas nesses regimes reduz a suscetibilidade da inflação a choques de demanda e oferta. Um exemplo recente é a chamada “desinflação ausente” na saída da Grande Recessão provocada pela crise financeira global. O hiato do produto dos países avançados ficou muito negativo, mas a inflação não caiu mais nem houve deflação.
No entanto, esses regimes inflacionários são sujeitos a mudanças muitas vezes brutais. Para Krugman, na interpretação de Landau, são essas mudanças, mais do que demanda e oferta, que mudam a dinâmica inflacionária.
No artigo, Landau busca juntar as abordagens de Summers/Olivier e de Krugman numa mesma narrativa, que aponta na direção de uma recomendação de política.
No curto prazo, raciocina Landau, se Summers e Olivier estiverem corretos, haverá impacto inflacionário do superpacote fiscal de Biden.
Porém, agora recorrendo a Krugman, o grande desafio é evitar que essa eventual ocorrência inflacionária no curto prazo leve a uma mudança de regime que permita que a inflação fique alta e acelere no médio e longo prazo.
Essa mudança de regime poderia ocorrer no contexto do que se chama de dominância fiscal (o conceito tem muitas facetas, mas parece que Landau o empregou num sentido bem amplo).
A incerteza criada por níveis recorde de dívida pública em tempo de paz, associada a um tipo bem recente de prescrição, a de que BCs e Tesouro devem cooperar estreitamente, poderia ser o gatilho da mudança de regime.
Nesse contexto, os mercados e os agentes econômicos em geral podem começar a duvidar da capacidade de o BC elevar a taxa de juros quando julgar necessário para conter a inflação – porque juros mais altos em cima de uma dívida pública muito elevada pioram a situação fiscal, da qual quem toma conta é o Tesouro.
Na questão de balancear o curto e o longo prazo, Landau vê dois erros simétricos.
O primeiro é tratar o longo prazo como uma continuidade do curto. Nesse caso, sacrifica-se a independência do BC porque no curto prazo há interesse de que BC e Tesouro ajam coordenados na mesma direção de impulsionar a economia.
O problema é que, mais adiante, pode ser útil que o BC tenha a capacidade de aumentar os juros para controlar a inflação, mesmo que isso seja uma dor de cabeça para o Tesouro.
O segundo erro é permitir que o arcabouço de longo prazo impeça que se faça a coisa certa no curto prazo. Assim, o BC reduz o estímulo monetário hoje, por preocupação com a inflação futura, e a economia pode cair numa armadilha de baixo crescimento.
De toda essa argumentação, Landau extrai uma recomendação de política, que visa permitir a flexibilidade no curto prazo sem ameaçar a estabilidade no longo prazo.
E sua sugestão é que, junto com medidas como o pacote trilionário de Biden, sejam tomadas providências para reforçar institucionalmente a independência dos bancos centrais.
Ou, nas suas palavras, “preservar a capacidade irrestrita de os bancos centrais tomarem qualquer medida que seja necessária e evitar a dominância fiscal”.
No Brasil, está para ser votada na Câmara a autonomia do Banco Central. Como nos Estados Unidos, ao contrário do que pensam os críticos, a autonomia aumenta, e não diminui, a capacidade de o governo e o BC estimularem a economia no curto prazo, quando isso se faz necessário.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)
Este artigo foi publicado pelo Broadcast em 10/2/2021, terça-feira.