O IPCA de outubro, de 0,86%, veio acima, mas próximo da mediana de 0,84%, com leituras desagregadas que ainda trazem preocupação em termos da irradiação do choque de alimentos e cambial. O Credit Suisse, por exemplo, revisou hoje sua projeção de IPCA em 2021 de 3,6% para 3,8%, já ligeiramente acima da meta de inflação de 3,75% do ano que vem.
O Banco Central (BC), entretanto, foi presenteado com uma ajuda até certo ponto inesperada, dada pelo resultado das eleições americanas - agora muito próximo à vitória de Joe Biden.
A muito provável vitória de Biden não foi surpresa, pelo contrário. Os institutos de pesquisa previam, inclusive, que ela seria bem mais folgada e menos emocionante. Já a reação benevolente dos mercados à perspectiva de um governo democrata não estava tão clara assim antes da eleição, como discutido nesta coluna ontem.
Com isso, o real já se apreciou consideravelmente, a curva de juros cedeu e a bolsa ultrapassou os 100 mil pontos.
Essa bem-vinda rajada de vento a favor pode colaborar para que o Banco Central não tenha que rever às pressas, no início do ano que vem, o seu plano de voo, como temem alguns analistas, diante do redespertar da inflação.
O problema, porém, é que o problema crucial, a incerteza fiscal sobre 2021, permanece inatacado. Quase não se ouve mais falar no que a equipe econômica está planejando para o próximo ano em relação a temas fundamentais das contas públicas.
O primeiro é o teto de gastos. O discurso oficial é de manutenção, mas isso é pouco diante do fato de que os gastos discricionários em 2020 estão em rota de cair para um nível ínfimo de cerca de R$ 80 bilhões.
Os R$ 96 bilhões orçados vão ser reduzidos na prática por dois fatores. Um deles é a derrubada do veto a prorrogação da desoneração da folha de diversos setores. O outro é a diferença entre o IPCA de julho de 2019 e junho de 2020, de 2,13%, que determinou o aumento nominal do teto dos gatos para 2021, e o INPC de 2020, que será bem maior e que indexa ou é referência para dezenas de milhões de benefícios previdenciários e sociais pagos pelo governo federal.
Gastos discricionários de R$ 80 bilhões não são compatíveis com o funcionamento normal do governo e a manutenção mínima da infraestrutura estatal.
De 2012 a 2019, em termos nominais (o que piora as coisas), o nível mais baixo de despesas discricionárias foi de R$ 108 bilhões, em 2012. Ainda em 2018, foram de quase R$ 130 bilhões. Imaginar que, em 2021, com toda a inflação do período, a natural ampliação gradativa da máquina do governo e a necessidade ainda de fazer gastos extraordinários por conta da pandemia, será possível viver com R$ 80 bilhões é uma fantasia.
Também pouco se tem falado mais recentemente sobre o tal do programa social voltado aos informais que ocuparia o lugar do auxílio emergencial, que acaba este ano. Algum analista poderia dizer que o governo tomou juízo fiscal (mas talvez não social) e simplesmente não vai colocar coisa alguma no lugar do auxílio.
Mas a dinâmica política desde o início do governo Bolsonaro não é essa. O Congresso frequentemente tem tomado as rédeas do processo de formulação e aprovação de políticas públicas, diante da confusão e paralisia do Executivo.
Reformar a rede de proteção social para incluir os informais parece ser uma bandeira que ganhou corações e mentes de políticos e da sociedade durante a pandemia. Existe até uma Frente Parlamentar da Renda Básica.
Se o governo cruzar os braços sobre o novo programa, é capaz que o Congresso tente e consiga aprovar algo, e aí o pepino de ainda assim manter o teto dos gastos pode cair no colo de Bolsonaro e de sua equipe econômica.
A bonança da vitória de Biden nos mercados, nesse sentido, pode até ser contraproducente, por induzir no sistema político a sensação de que é possível "tocar com a barriga" no impasse fiscal deste momento. Se isso acontecer, o Banco Central pode ficar certo de que, após uma breve calmaria, virá tempestade pesada.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 6/11/2020, sexta-feira.