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Economia e políticas públicas

Opinião|Bolsonaro e a maré antineoliberal

Presidente brasileiro parece mais capaz de resistir aos ventos contra o liberalismo econômico que sopram da Argentina, Chile e de outros países da América do Sul.

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Atualização:

No Chile e na Argentina, o liberalismo encarnado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, está tomando uma coça em termos políticos.

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Nesse caso, não interessa a realidade dos fatos (o liberalismo falhou ou não falhou?), mas sim a força da narrativa. E o simbolismo da volta dos peronistas ao poder na Argentina e das maciças manifestações populares no Chile, o modelo liberal da América Latina, é inegável.

Mas será que essa onda vai chegar ao Brasil? Aqui, a resposta é bem mais complicada.

Em primeiro lugar, por mais que Guedes encarne para a elite bem pensante o que importa no governo Bolsonaro, para a massa dos seus eleitores a política econômica liberal está em segundo plano. Bolsonaro foi eleito em boa parte pelo seu discurso superconservador em costumes e valores.

Já Macri e Piñera têm um perfil de centrodireita moderna, liberais na política (embora o argentino tenha quase só ficado no discurso), e bem mais "soft" na área de valores. Assim, acabam sendo presidentes mais associados justamente à pauta econômica, e os revezes neste front provocam estragos mais fortes e imediatos.

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Em segundo, embora a atual onda de protestos na América do Sul esteja de fato atingindo de forma mais incisiva governos de centro-direita, a esquerda no poder em alguns países também está sob pressão: veja-se os protestos contra a quarta reeleição de Evo Morales e o endurecimento da disputa no Uruguai, que foi para o segundo turno.

Na América Latina, fatores internacionais tendem a afetar conjuntamente quase todos os países, como mostra o trabalho dos cientistas políticos Daniella Campello e Cesar Zucco, da Ebape.

Eles criaram um índice de "bons tempos econômicos" para a América Latina, baseado apenas nas taxas de juros americana (quanto mais altas, pior) e o valores das commodities (quanto mais altas, melhor). Os dois pesquisadores verificaram que o indicador se correlaciona muito bem com a capacidade de presidentes na região se reelegerem ou elegerem seus sucessores.

Os juros estão baixos para padrões históricos, mas as commodities estão em baixa relativamente ao período de 2011 a 2014, o que afeta a popularidade de boa parte dos governos da América do Sul, em particular.

Contudo, apesar dessa tendência geral que afeta toda a região, os impactos específicos estão sujeitos às peculiaridades de cada país, na visão de alguns analistas.

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Para Carlos Pereira, cientista político da Ebape-FGV, a situação chilena parece com a do Brasil em 2013, e tem uma dinâmica de reversão de expectativas. No Brasil, o aumento do acesso a bens de consumo na era Lula teria criado cidadãos mais exigentes, que em 2013 foram as ruas exigir melhoras nos precários serviços públicos brasileiros.

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No Chile, pode estar acontecendo um processo semelhante, mas de maior amplitude temporal. Por décadas, o país teve um desempenho socioeconômico superior ao da região, o que - como no caso brasileiro - cria o chamado "paradoxo de Tocqueville", como observa Marcus Melo, cientista político da UFPE: isto é, a revolta surge após um período de melhora. O avanço socioeconômico continuado cria expectativas de progresso permanente, e, quando estas são frustradas, a insatisfação popular se mobiliza contra o sistema.

No Chile, o gatilho está ligado ao desempenho econômico mais comedido nos últimos anos. Adicionalmente, como observa Melo, o Chile tem uma superelite dominada por meia dúzia de famílias, que controla os negócios e a política nacional de uma forma sem paralelos em outros países da região. Outra particularidade chilena são as baixas aposentadorias do sistema privatizado.

A revolta, nesse caso, também pode estar ligada a uma repactuação da distribuição do poder econômico e político entre a elite e o resto da população.

Já na Argentina, como observa Pereira, trata-se de um caso bem distinto de uma tentativa de ajuste liberal, após um período populista, que não funcionou - seja pela insuficiência de medidas, seja pela indisposição da sociedade em pagar a conta.

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De qualquer forma, não parece que os levantes e turbulências em outros países da América do Sul constituam um motivo de grande alarme para o governo Bolsonaro.

A situação do Brasil é a de um país que sai muito devagar de uma recessão devastadora, mas com a economia bem equilibrada, e com um presidente eleito em parte por bandeiras conservadoras não econômicas. É uma conjuntura bastante distinta daquela dos nossos vizinhos e aparentemente menos vulnerável a uma eventual "onda contra o neoliberalismo".

Os grandes adversários do presidente continuam a ser ele mesmo e o seu círculo íntimo, ao criarem conflitos políticos inúteis que aumentam a incerteza e inibem os investimentos.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 20/10/19, terça-feira.

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Opinião por Fernando Dantas
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