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Economia e políticas públicas

Opinião|China, infelizmente, não é exemplo

A economia chinesa está se recuperando da pandemia melhor do que se esperava. Mas como explica Livio Ribeiro, especialista em China do Ibre-FGV, características econômica, sociais e culturais chinesas fazem com que não se deva esperar o mesmo desempenho pós-Covid de outros países não asiáticos como o Brasil.

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Atualização:

O crescimento de 3,2% da China no segundo trimestre, na comparação interanual, veio acima da mediana das expectativas do mercado, de 2,4%. A China, primeiro país a sofrer a pandemia da Covid-19 (com efeito econômico máximo no primeiro trimestre), parece estar se recuperando bem do baque. Será isso um sinal de que o resto do mundo, incluindo o Brasil também terá uma retomada pós-coronavírus melhor do que a antecipada?

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O economista Livio Ribeiro, analista de China no Ibre/FGV, acha essa conclusão precipitada.

"A China tem uma organização da economia e sociedade muito diferente da observada em outros lugares, e isso tem que ser levado em conta", diz o pesquisador.

Uma primeira diferença importante é o peso da indústria no PIB chinês. Segundo dados do Banco Mundial de 2017 em paridade de poder de compra (PPP), a indústria é responsável por 40% do PIB da China, e os serviços, por 51,6%.

No Brasil, no mesmo ano a indústria respondia por 20,7% e os serviços por 72,7%. Os mesmos indicadores para os Estados Unidos eram de, respectivamente, 19,1% e 80%.

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Dessa forma, na crise da pandemia, que afetou muito mais os serviços do que a indústria (o que não quer dizer que esta não tenha sido abalada), a China leva vantagem.

E os dados do segundo trimestre são um bom exemplo desse diferencial. A indústria chinesa cresceu 4,1% no segundo tri, em termos interanuais, comparado a uma expansão trimestral média de 5,7% em 2019.

Já o setor de serviços chinês teve uma alta interanual de 1,9% no segundo trimestre, comparada a um crescimento trimestral médio de 6,9% em 2019.

Na indústria, o destaque foi a construção civil, que cresceu 7,8% no segundo trimestre, acima da média interanual de 5,7% em 2019. Aí entrou o papel do governo, principalmente pela injeção de crédito.

Segundo Ribeiro, "é a velha China funcionando". Ele quer dizer que, como nas demais crises e desacelerações das últimas décadas, os pacotes de estímulo do governo chinês tendem a impulsionar segmentos como construção e infraestrutura.

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E isto significa mais investimento, quando, na verdade, a mudança de modelo econômico que a China se propôs a fazer, o que seria a "nova China", é na direção do consumo e dos serviços.

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O economista nota que, nos serviços chineses no segundo trimestre, houve uma heterogeneidade muito pronunciada. A intermediação financeira cresceu 7,2% e serviços ligados à atividade imobiliária tiveram expansão de 4,1%, ante uma média trimestral em 2019 de 3%.

Por outro lado, recreação e hospedagem recuaram 18% no segundo trimestre, comparado a uma média de crescimento de 6,3% em 2019. E leasing e serviços comerciais, em que entram aluguéis, sofreram queda de 8%, ante média de expansão de 8,6% em 2019.

Aqui, o diagnóstico é claro. Os serviços que foram mais atingidos pela pandemia são justamente aqueles ligados a turismo, hotelaria, entretenimento fora de casa. E continuaram a sofrer muito no segundo trimestre.

Ribeiro observa que, inclusive, esses segmentos podem estar sendo afetados por uma mudança de padrão de consumo trazida pela pandemia, o que é mais do que um encolhimento temporário no momento da quarentena.

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Essa mudança não tem que ser permanente, mas pode durar até que a vacina e a imunização maciça da população deem total segurança para a retomada de todas as atividades pré-pandemia.

O desenho da retomada chinesa pós-Covid traz várias lições para outros países, segundo Livio. A primeira, já mencionada, é que aqueles com peso muito grande dos serviços no PIB tenderão a ter recuperações mais lentas.

Mas ele nota ainda que, dentro dos serviços, países e regiões muito dependentes de turismo e viagens também vão sofrer mais. Isso pode ser válido tanto para nações europeias como França, Itália e Espanha quanto para Estados brasileiros como o Rio de Janeiro e vários do Nordeste.

Há outro aspecto da sociedade chinesa, e de vários países do Leste Asiático, que também conta para uma saída melhor da pandemia, na visão de Ribeiro.

"Eles têm uma organização social mais favorável para lidar com um problema como a Covid-19", pensa o analista.

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Na sua visão, os asiáticos, de forma geral, foram melhor e mais longe no chamado "track and trace", que é a ação mais eficaz para conter a pandemia preservando ao máximo a economia. Trata-se de, por meio de ampla testagem, identificar e acompanhar pelo sinal de celular todas as pessoas contaminadas, isolando-as e também a todos os outros com quem tiveram contato presencial.

Não só há a questão da disciplina asiática, como também aspectos institucionais, para Ribeiro. "É pouco provável que o Supremo da Coreia diga que o 'track and trace' é inconstitucional porque viola a liberdade individual dos cidadãos", ele comenta.

Todos esses fatores explicam por que o economista é reticente quanto a extrapolar a recuperação chinesa para outros países geograficamente distantes e socialmente muito diferentes.

O Brasil, porém, colhe ao menos uma vantagem de uma boa retomada chinesa: o país asiático é o nosso maior comprador externo.

Ribeiro, no entanto, tem uma projeção modesta para o crescimento do PIB chinês em 2020 (comparada a outras previsões), de 1,2%.

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Uma das principais razões para isso é que ele julga que o governo chinês deve retirar seus estímulos assim que puder, justamente porque a transição de modelo está emperrando já há um bom tempo. Em 2019, foram a gripe suína e a guerra comercial com os Estados Unidos que atrapalharam

O economista acha que esse temor (retirada rápida do estímulo na China), inclusive, explica porque as bolsas chinesas tiveram esta semana seu pior desempenho desde fevereiro, quando houve o pico da pandemia no país.

Na verdade, como aponta Ribeiro, a China teve uma atuação de estímulo governamental modesta nesta crise, comparada às outras principais economias globais. A maior parte do apoio foi monetário e creditício, mas, mesmo aí, ficou bem aquém do europeu.

Em termos de apoio a renda das famílias, a China não fez praticamente nada. Como os chineses têm alta poupança, o governo deixou que os cidadãos se virassem por conta própria para suprir a queda ou supressão da renda durante a quarentena.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)

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Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 17/7/2020, sexta-feira.

Opinião por Fernando Dantas
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