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Economia e políticas públicas

Opinião|Desperdiçando a calmaria

Melhora temporária da pandemia e da economia é oportunidade para o Brasil se concentrar numa saída definitiva da crise sanitária, acelerando a vacinação e articulando formas mais racionais de combater eventual terceira onda. Nem é preciso dizer que o governo não está fazendo nada disso.

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Foto do author Fernando Dantas
Atualização:

O Brasil, mais uma vez, está ignorando a máxima de que é no bom tempo que se deve consertar o telhado. Bom tempo aqui, claro, é usado em termos relativos. Melhor seria chamar o atual momento de calmaria. Hora, portanto, de acelerar os reparos, o que não está sendo feito.

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Há pouco mais de um mês, a média diária de sete dias de óbitos registrados (não necessariamente ocorridos) por Covid-19 pelo Ministério da Saúde vem caindo, saindo de cerca de 3,1 mil para 1,9 mil, nível em que estacionou há alguns dias.

Ainda é um patamar altíssimo. Mas a queda já foi suficiente para desafogar um pouco a rede hospitalar e de atendimento médico, evitando as cenas explícitas e dantescas de colapso sanitário que tanto se repetiram desde o início do ano.

Na economia, desde o final de março, as notícias têm sido boas. Muitas projeções de crescimento em 2021 foram alteradas das cercanias de 3% para o entorno de 4%.

É, portanto, um momento de alívio. Uma pausa, ainda que precária, na metralhadora de revezes e tragédias que vem castigando impiedosamente a sociedade e o governo brasileiros. Um tempo em que, em tese, é possível sair do imediatismo reativo para o planejamento de saídas mais consistentes e seguras da crise.

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Um tempo que pode ser curto, na verdade. A surpresa na reação da economia deriva em boa parte do fato de que este ano houve menos distanciamento social do que se imaginava, mesmo no momento mais calamitoso da pandemia, em abril.

Como as mortes por Covid-19 recuaram desde meados do mês passado, é possível pensar num cenário em que as restrições à circulação diminuirão ainda mais, caminhando-se para um segundo semestre com a economia quase inteiramente reaberta. Nesse caso, o PIB pode trazer surpresas positivas até para os analistas mais otimistas.

Mas e se a pandemia voltar com força? Este início de 2021 mostrou que muitos brasileiros preferem - ou se veem forçados, por sua condição socioeconômica - arriscar a vida a voltar para uma quarentena radical como a de março e abril do ano passado.

Ainda assim, uma grande terceira onda inevitavelmente levará a novas medidas restritivas por governos estaduais e municipais, e representará mais uma freada na economia. Assim como há fadiga de distanciamento social, pode surgir também uma fadiga da mortandade da pandemia, deprimindo e desanimando pessoas e empresas.

E há sinais e previsões de que a situação sanitária pode voltar a piorar. A queda na média de sete dias de óbitos por Covid, que vinha em ritmo célere, travou no nível entre 1900 e 1950 há oito dias. A média móvel de 14 dias de casos de Covid também empacou em torno do nível de 60 mil há mais de dez dias. Subiram também em vários Estados as internações pelo coronavírus.

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Há algumas projeções apavorantes, como a do Instituto para Métricas de Saúde e Avaliação (IHME) da Universidade de Washington, em Seattle, noticiada pelo Estadão. No cenário mais otimista para o Brasil da instituição, morrerão mais 340 mil brasileiros de Covid-19 até o fim de agosto. No cenário principal, 390 mil. No pessimista, 535 mil.

É preciso tomar cuidado com projeções sobre a pandemia, cuja evolução, em termos temporais e geográficos, foi surpreendente desde o início.

Ainda assim, o mínimo que se pode dizer é que paira sobre o Brasil a ameaça de recrudescimento.

Recente artigo de economistas do FMI e de Stanford mostra que a incerteza global já voltou ao nível pré-pandemia. Duas causas desse fato não têm a ver com a Covid-19: saíram de cena a fase aguda da guerra comercial Estados Unidos-China e a incerteza sobre o Brexit.

Mas os autores indicam que também a incerteza em relação a pandemia começou a declinar, especialmente nos países ricos, em que a vacinação está mais adiantada. O mundo, na verdade, está entrando numa fase de otimismo econômico: eles notam que o FMI projeta crescimento global de 6% este ano e de 4,4% em 2022.

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O artigo, porém, ressalva que a incerteza caiu menos nos países emergentes, onde a vacinação está mais lenta. O que é reforçado por recente post da economista Anna Carolina Gouveia no Blog do Ibre (ela trabalha no think tank), apontando que a incerteza no Brasil é uma das mais resistentes à queda no momento, encontrando-se acima da média histórica e do mesmo indicador de 18 entre 19 países com características comparáveis.

Não há como negar que o Brasil é uma usina de incertezas, da fragilidade fiscal ao desgoverno de Bolsonaro.

Mas particularmente grave no momento é a incerteza sobre uma terceira onda e a vacinação no Brasil. O ritmo medíocre da imunização no País será capaz de conter ou ao menos mitigar uma eventual terceira onda?

Todos os esforços do governo deveriam estar concentrados agora em acelerar a entrega de vacinas e - neste caso incluindo as outras esferas da Federação - a vacinação em si. Um desafio político, científico, diplomático e logístico.

Outra frente imprescindível seria a articulação entre Brasília, governadores e prefeitos de uma estratégia de quarentenas focalizadas e coordenadas para tentar evitar que novos surtos locais se convertam numa terceira onda no País inteiro - ao mesmo tempo em que se tentar minimizar os freios à economia.

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Evidentemente, nada disso está sendo feito. Todo o caótico senso de prioridade do governo está concentrado na sua defesa na CPI. No mais, toca-se com a barriga, apostando que a pandemia vai continuar a arrefecer por si mesma, assim como se apostou que isso ocorreria no ano passado, antes da pavorosa segunda onda que assolou o País.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 19/5/2021, quarta-feira.

Opinião por Fernando Dantas
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