A eleição de hoje nos Estados Unidos marca a maré alta da onda de populismo no mundo desenvolvido, que pode subir ainda mais no caso, menos provável, mas não impossível, de vitória do candidato republicano, Donald Trump.
Com a grande crise global de 2008 e 2009, e as falhas que ela expôs na ideologia e no discurso do capitalismo triunfante pós-queda do Muro de Berlim, a esquerda partiu na frente no ataque ao establishment econômico-financeiro global. Surgiu o movimento "Occupy Wall Street" que foi a senha para outros tipos de ocupação nos mais diversos recantos do mundo, e nas partes da zona do euro assoladas pela recessão pós-crise emergiram partidos de esquerda radical e anti-establishment como o Syriza na Grécia (que ficou mais convencional no poder) e o Podemos na Espanha.
Na verdade, porém, como mostrou um estudo do final de 2015 dos economistas alemães Manuel Funke e Moritz Schularik, crises gigantes como a de 2008 e 2009 estimulam mais o radicalismo de direita do que o de esquerda (embora incentivem ambos), ao menos no mundo desenvolvido. Não foi à toa que o nazismo surgiu na década de 30 do século passado.
A crise de imigração na Europa e a ascensão de forças políticas de direita em diversos países do Velho Continente, com a culminância do voto favorável ao Brexit, foram sintomas desse mesmo fenômeno. Agora, em caso da eleição de Trump, ele assumiria uma nova e assustadora dimensão.
A vitória do candidato republicano representaria de fato uma ruptura no Executivo norte-americano, que seria tomado por um feroz populista depois de um período a perder de vista de presidentes com laços com o establishment.
Trump rompe diversas regras não escritas que foram obedecidas por todos os presidentes norte-americanos durante muitas décadas: mente, o que todos fizeram, mas o faz de forma compulsiva e sem o mais leve traço de vergonha; flerta com o racismo na sua atuação pessoal e o tolera e até mesmo estimula entre seus correligionários; destrata grosseiramente mulheres, pessoas de origem latino-americana e outros grupos; trata com desdém e desrespeito os aliados dos Estados Unidos no xadrez geopolítico global; mostra aberta simpatia ao autoritarismo russo; alimenta teorias conspiratórias que, se levadas a sério, põem em xeque a confiabilidade das instituições democráticas americanas; etc.
Na seara econômica, os planos de Trump representam um voluntarismo ignorante que, se posto em prática, teria consequências muito ruins para a economia americana e, em decorrência, global.
Recentemente, centenas de economistas com atuação nos Estados Unidos, entre os quais o brasileiro José Alexandre Scheinkman, das universidades de Princeton e Columbia, assinaram um manifesto no Wall Street Journal exortando os americanos a não votarem em Trump, apresentado como uma "escolha perigosa e destrutiva para o país".
A carta aberta detalha o potencial de dano da mistura de mistificação e propostas calamitosamente equivocadas do candidato republicano. Ele lançou suspeitas sobre respeitadas instituições de estatística econômica americanas; iludiu eleitores com a ideia de que empregos industriais, que declinam desde 1970, iriam voltar renegociando-se o Nafta ou impondo tarifas à China; mentiu sobre a inexistente queda da renda e da riqueza nos Estados Unidos desde os anos 80; propôs medidas fiscais que derrubariam a arrecadação em trilhões de dólares ao mesmo tempo em que falsamente garantiu que melhoraria as contas públicas; e espalhou falsidades como a de que os Estados Unidos são um dos países mais taxados do mundo.
Segundo os economistas, Trump "coloca o pensamento mágico e as teorias conspiratórias acima de avaliações sóbrias sobre opções de política econômica factíveis".
Na verdade, o candidato republicano mostra que o populismo não tem coloração ideológica. A sua arrogância ignorante e o desprezo pelo conhecimento especializado, aliados à arte de prometer o que é impossível, mas desejado por muita gente, lembra muito populistas latino-americanos como o falecido Hugo Chávez, ainda que o polo ideológico esteja invertido.
Certamente um país com a solidez econômica e institucional dos Estados Unidos tem muito mais anticorpos para o estrago que um caudilho pode promover do que a Venezuela. Por outro lado, qualquer estrago nos Estados Unidos tem muito mais importância para o resto do mundo do que as ruínas da Venezuela, para ficar no mesmo exemplo. Há muito em jogo no dia de hoje. Hillary Clinton pode não ser exatamente a candidata dos sonhos para a presidência dos Estados Unidos, mas ainda assim ela é uma alternativa infinitamente melhor do que Trump. (fernando.dantas@estadao.com)
Fernando Dantas é jornalista do Broadcast
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 8/11/16, terça-feira.