Um dos aspectos da gestão política do governo Bolsonaro que mais intriga os analistas políticos é o descaso do núcleo do Executivo em relação à sua própria pauta de medidas enviadas ao Congresso.
Este é um ponto que vem sendo enfatizado pelo cientista político Fernando Limongi, da EESP/FGV. O pesquisador, inclusive, cunhou a irônica expressão "presidencialismo do desleixo" em recente artigo na revista Piauí sobre "o modo Bolsonaro de governar".
Assim, Bolsonaro é um presidente recordista em medidas provisórias (MPs) que caducam após 120 dias e em vetos presidenciais derrubados pelo Congresso.
Da mesma forma, medidas que contrariam o programa e as ideias da equipe econômica passam tranquilamente pelo Congresso, sem que o governo monte uma estratégia eficaz de defesa. O último exemplo é o projeto de lei (PL) que torna obrigatória a execução de mais dois tipos de emendas: de comissão permanente do Senado e da Câmara e do relator-geral da proposta do Orçamento.
O cientista político Cláudio Couto, da EAESP/FGV, compartilha do diagnóstico do "presidencialismo do desleixo" do seu colega Limongi.
Durante o Seminário de Perspectivas Ibre/Estadão do quarto trimestre, realizado ontem na FGV em São PAULO, Couto notou que, ao rejeitar a formação de um bloco governista multipartidário como base formal de apoio, Bolsonaro perdeu muito a capacidade de controle sobre o Congresso.
"Nenhum presidente escolhe o presidencialismo de coalizão porque quer, mas sim porque esta é forma como a política funciona num presidencialismo multipartidário", explicou Couto.
Nessa madeira tradicional de operar a política num sistema político como o brasileiro, ele continua, a base parlamentar compartilha os ganhos e os custos de estar próxima do presidente. Uma coisa compensa a outra.
Se há vantagens em ter o apoio presidencial, como verbas, cargos e até votos (se o presidente for popular), também há custos, como o de votar medidas impopulares, mas necessárias, e às vezes até ir contra interesses de grupos representados pelo próprio parlamentar.
Na operação normal do presidencialismo de coalizão, o Executivo faz essa barganha no atacado com os líderes dos partidos do bloco governista, que são responsáveis por manter a tropa unida na hora de votações difíceis nas duas casas do Congresso.
Sem maioria formal, o governo tem que caçar voto por voto junto a cada parlamentar e dezenas de partidos em cada votação importante, o que evidentemente sai muito mais caro e tende a falhar com frequência muito maior.
Nessa visão, a aprovação de uma boa reforma da Previdência por Bolsonaro é interpretada como fruto de uma longa maturação do tema junto ao Congresso e à sociedade. Em outros palavras, a reforma já estava madura e o governo, com enorme ajuda de lideranças do Congresso, como Rodrigo Maia (DEM-RJ), teve apenas que a colher.
Mas essa estratégia, extremamente dependente do protagonismo do próprio parlamento, não vai funcionar para a agenda muito mais multifacetada, complexa e contenciosa da "penca de PECs" já enviadas ao Congresso, e das que correm independentemente do Executivo e que estão prometidas.
É um enorme emaranhado de medidas que abrangem as áreas tributária, administrativa, federativa, orçamentária, fiscal etc., com centenas de pontos contenciosos a exigir duríssimas e complexas negociações.
Tocar uma pauta desse tipo exige coordenação central, estabelecimento de prioridades e foco, forte engajamento presidencial e um exercício intenso e contínuo de articulação entre o Executivo e o Legislativo.
Não se vê nada remotamente parecido a esse conjunto de características na gestão política de Bolsonaro. As PECs recentemente enviadas ao Senado, na verdade, estão paradas, e o governo não parece empenhando em fazê-las caminhar.
O que vai resultar disso tudo? A visão de muitos analistas é de que o ímpeto reformista vai murchar a partir do próximo ano, como relatado neste espaço na coluna de ontem. A ideia é que, por mais que o ministro da Economia, Paulo Guedes, e sua equipe se empenhem em fazer avançar a agenda econômica, simplesmente os meios para que isto ocorra não estão presentes.
Se é possível tentar um prisma um pouco diferente para analisar essa intrigante conjuntura política, talvez Bolsonaro, com seu desleixo em relação à pauta parlamentar do Executivo, tenha praticado uma espécie de torção no arcabouço institucional tradicional das atribuições e responsabilidades dos Poderes da República.
É como se o próprio presidente tivesse aberto as portas para um tipo informal de "parlamentarismo branco", enviando suas propostas para o Congresso e aceitando resignado como o Legislativo as recebe, modifica, aprova ou desaprova. Assim, a pauta efetiva será uma colagem entre decisões relativamente autônomas do Executivo e do Legislativo, com autoria, custos e ganhos sendo divididos entre os dois Poderes.
Pode funcionar? Um aspecto favorável é que a centro-direita, propensa a referendar em linhas gerais a pauta liberal na economia de Guedes, domina amplamente o Congresso. Outra ideia seria a de que, ao lavar as mãos, Bolsonaro transfere para o Legislativo parcela da responsabilidade governamental - percebida pela população - pelo bom andamento da administração do País. E essa torção de responsabilidade induziria os congressistas a posturas, no mínimo, menos irresponsáveis.
O caso "a favor" já não parece dos mais sólidos, e ainda há que se adicionar os inúmeros fatores "contra".
A ambição e a complexidade da pauta de reformas, como já observado acima, exigem um comando central e poderoso (em termos de distribuir benesses e punir os dissidentes) que só o Executivo está aparelhado para assumir.
O primeiro ano de governo é tradicionalmente a janela por excelência para reformas. A partir do segundo, a relação entre o presidente e o Legislativo se esgarça, o benefício da dúvida em prol do Executivo por parte da sociedade se exaure e o calendário eleitoral (pleito municipal no próprio segundo ano e estadual, federal e presidencial em mais dois) se impõe.
A belicosidade intrínseca de Bolsonaro e seu círculo íntimo tende a criar fraturas e cisões, e torna ainda mais difícil a coordenação e a costura de consensos entre os múltiplos atores e interesses envolvidos na aprovação de cada reforma. Até a disputa de protagonismo entre Câmara e Senado atrapalha quando o governo se omite.
Maia, a liderança do Congresso que emergiu como competente e confiável fiador da agenda econômica, termina seu mandato em 31 de janeiro de 2021 e não pode se reeleger.
Em resumo, é difícil ficar otimista com a perspectiva de prosseguimento das indispensáveis reformas da economia brasileira.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 13/12/19, sexta-feira.