Tudo indica que, assim que Câmara e Senado estejam com seus novos presidentes, o tema da hora será ressuscitar de alguma forma o auxílio emergencial.
Hipótese e balões de ensaio pululam. Fala-se em mais algumas parcelas do auxílio ou em turbinar o Bolsa Família, em realocar gastos dentro do teto ou abrir créditos extraordinários, em possivelmente "casar" um novo auxílio com a tramitação e suposta aprovação da PEC emergencial.
Do ponto de vista do mercado, a grande questão parece já não ser a de se haverá ou não uma nova transferência para substituir o auxílio - o jeitão é de que haverá -, mas sim a de qual será o impacto do que virá na já fragilizada situação fiscal, no risco Brasil e, consequentemente, no preço dos ativos brasileiros.
O precedente mais recente não é auspicioso, como já se comentou várias vezes neste espaço.
Em 2020 o valor do auxílio emergencial foi decidido numa espécie de leilão entre Legislativo e Executivo para disputar quem era mais generoso com o dinheiro do contribuinte.
O auxílio acabou sendo desenhado como um programa espetacularmente caro, alcançando uma cifra entre 15 a 20 vezes superior ao Bolsa Família nos meses do segundo trimestre até setembro, a partir de quando os valores pagos foram reduzidos pela metade.
Os efeitos benéficos naturalmente também foram poderosos. A pobreza atingiu recordes de queda em 2020 e o PIB brasileiro caiu menos que a média latino-americana no ano passado.
Como não existe almoço grátis, o exagero do auxílio emergencial já começa a mostrar a sua face menos benigna.
Uma das razões para ter maneirado em 2020 revela-se exatamente na questão que agora se impõe.
E se a gente for obrigado a fazer de novo, mas já tendo arrebentado as contas públicas no ano passado?
É esse o problema por detrás do câmbio do real excepcionalmente desvalorizado mesmo diante de outros "patinhos feios" emergentes, como a África do Sul, e da recente alta da curva de juros doméstica.
Sempre é bom ressaltar esse lado dos juros quando se fala na piora dos ativos financeiros, para lembrar que aquilo que é ruim para o mercado hoje pode ser prejudicial aos pobres amanhã.
A retomada no Brasil já sofre a dupla pancada da apavorante segunda onda da Covid-19 e da vacinação atrasada - problemas que também se veem mundo afora, com variações de país para país.
Um coquetel de risco país, dólar, juros e expectativas inflacionárias em alta, ligado às incertezas fiscais, pode acabar de vez por todas com a recuperação brasileira. Com reflexo no emprego e na renda, especialmente dos pobres, claro.
Mas será que o provável substituto do auxílio emergencial será confeccionado com o mesmo grau de irresponsabilidade fiscal da criação do programa original?
Não necessariamente. Em 2020, o programa foi gestado no pico do pânico sanitário e econômico em relação à pandemia.
Ninguém fez muita conta na hora em que o martelo foi batido no valor unitário de R$ 600 e em que foram definidas as regras que levariam a um público participante (incluindo um caminhão de gente que não precisava) de mais de 65 milhões de pessoas.
Gradativamente, foi caindo a ficha da imensidão fiscal do auxílio emergencial, e das vantagens e riscos que isso acarretava.
Como nota Rafael Cortez, analista político da consultoria Tendências, os quatro candidatos que disputam as presidências da Câmara e do Senado têm, de fato, sinalizado que pretendem substituir o auxílio, mas todos ressalvam que é preciso não destruir o arcabouço fiscal.
Para Cortez, não há sinal até agora de que uma competição para ver quem é mais "generoso" com a pauta do auxílio, e mais disposto a romper com a atual política fiscal, tenha tomado conta da disputa das presidências das duas Casas do Congresso.
Ao contrário, sempre que algum candidato faz alguma declaração sobre o tema que pareça ter afetado negativamente o mercado, a tendência é que busque se corrigir, enfatizando seu compromisso com alguma ideia de ajuste fiscal.
Mas isso para o analista não significa de forma alguma, por outro lado, que o País tenha voltado à preponderância das preocupações fiscais na política econômica, que havia pré-pandemia.
Segundo Cortez, essa página está virada e agora a questão fiscal vai ter necessariamente que dividir, no mínimo, o protagonismo com o problema social.
"O mercado só não vai se estressar se adaptar suas expectativas para o fato de que a agenda econômica não voltará a se dar nas bases pré-pandemia", ele diz.
Na verdade, o analista vê o sistema político mirando um compromisso entre o social e o fiscal que evite uma ruptura e crise econômica traumática, mas que sem dúvida vai reduzir muito a ambição da agenda de política econômica.
Isso pode jogar areia na tramitação de emendas constitucionais. É até possível pensar no novo comando do Congresso tentando conciliar um substituto ao auxílio com a PEC emergencial, por exemplo, mas é difícil imaginar que pontos politicamente difíceis como a redução de jornadas e salários de servidores sejam aprovados.
E há motivos adicionais para isso, além da reemergência da questão social, como nota Cortez.
A centrodireita rachou, com parte apoiando Bolsonaro e outra parcela fluindo para um potencial candidato para brigar com o atual presidente em 2022. Isso dificulta a obtenção de maiorias de 3/5 necessárias para aprovar PECs, quando se sabe que a esquerda deve se fechar contra todas as pautas reformistas de teor fiscal e liberal que estão sobre a mesa.
O enfraquecimento recente de Bolsonaro, com forte queda de popularidade e risco de governabilidade, só torna tudo ainda mais difícil.
O grande problema, caso a visão do analista da Tendências esteja correta, é que a sintonia fina de tentar evitar uma ruptura fazendo apenas um mínimo na área fiscal é difícil e perigosa. O risco de uma crise mais intensa aumenta. Cortez, naturalmente, está a par disso, tanto que enfatiza a incerteza elevada como uma das tônicas do atual momento.
O sistema político está caminhando sobre uma finíssima camada de gelo.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 25/1/2021, segunda-feira.