Há excelentes servidores públicos no Brasil, que se dedicam com afinco e honestidade ao seu trabalho, tendo o bem público como objetivo maior.
No entanto, como vem se dizendo recentemente em relação ao racismo, o problema do setor público não é o das pessoas, deste ou daquele servidor. O fato é que existe um inegável "corporativismo estrutural" no País, que não vai mudar pela boa vontade de grande parte dos funcionários.
É preciso ir fundo nas estruturas institucionais que, ao longo da história, criaram um setor público que coloca o bem estar dos seus próprios participantes acima do bem estar da população.
Em especial, o Legislativo e o Judiciário (junto com os órgãos autônomos de Estado) se colocam acima de toda a sociedade, inclusive dos seus colegas do Executivo.
Um exemplo emblemático dessa postura enraizada nas nossas tradições acaba de acontecer. E o momento e as circunstâncias em que esse exemplo ocorreu seriam escandalosos, se não fosse o fato de a sociedade estar anestesiada por séculos de privilégios das corporações públicas.
O Supremo Tribunal Federal decidiu ontem em favor de manter a proibição de que se reduzam salários e jornadas de servidores públicos, e a proibição de que o Poder Executivo dos entes federados possa reduzir unilateralmente os repasses ao outros Poderes (e órgãos autônomos) quando houver frustração de arrecadação.
Para avaliar o quão vergonhosos são esses privilégios que o Supremo decidiu manter para o setor público do qual faz parte, em meio a uma das mais devastadoras crises econômicas, sociais e de saúde pública da história brasileira, é preciso recuar um pouco e analisar o contexto.
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) previa circunstâncias em que tanto uma coisa como outra poderiam ocorrer: salários e jornadas de servidores poderiam ser cortados proporcionalmente, e o Executivo, que gere o caixa, poderia cortar despesas de forma proporcional entre Poderes e órgãos de Estado quando houvesse frustração de receita.
Como sói acontecer no Brasil, entretanto, partidos de esquerda, PT, PCdoB e PSB, que se dizem defensores dos pobres, mas na verdade defendem as corporações públicas, entraram, já há muito tempo, com uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) contra aqueles dispositivos, conseguindo suspendê-los liminarmente. O que o STF fez agora foi tomar a decisão definitiva, a favor do corporativismo demandado pelos partidos de esquerda no passado.
É um momento peculiar para o Supremo tomar essa absurda e imoral decisão.
Segundo as projeções do Ibre/FGV, o desemprego no Brasil, que já fechou 2019 no nível muito alto de 11,9%, deve atingir um nível médio em 2020 de incomensuráveis 18,7%. A renda média da população, de acordo com projeções de analistas, deve cair 10% este ano.
Segundo dados de hoje, o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, de redução proporcional de salário e jornada e suspensão temporária do contrato de trabalho, já atingiu 9 milhões de trabalhadores do setor privado.
O Supremo basicamente decretou que todo o aperto de cinto tem que ser feito pelos trabalhadores do setor privado - com renda média bem menor que a dos servidores, e boa parte dos quais informais - e que os funcionários públicos, na sua bolha protegida, são intocáveis.
Mas há hierarquias também dentro do setor público, e a casta mais ciosa dos seus privilégios é justamente a do Judiciário, com o STF no seu topo.
Hoje, na situação extremamente comum de as receitas orçamentárias dos Estados serem frustradas, todo o corte de despesa tende a ser feito pelo poder Executivo, aquele mesmo que emprega médicos, professores e policiais que prestam serviços essenciais à população.
Judiciário, Legislativo, e outros órgãos autônomos da esfera estadual habitualmente não perdem um centavo, e seguem tranquilos com seus altos salários em dia, com suas obras suntuosas, viagens a rodo etc.
Como notou o economista Samuel Pessôa em coluna que fiz sobre o tema no início de 2019, o sistema atual "insula da crise fiscal os Poderes e órgãos com maior poder de pressão corporativa".
Do jeito que a coisa ficou, o Executivo estadual, responsável por gerir o caixa, não pode limitar repasses de recursos ao Legislativo, Judiciário, MP e Defensoria Pública quando houver frustração de receitas, a não ser que Suas Excelências concordem. Na prática, o Executivo sempre acaba pagando a conta.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 25/6/20, quinta-feira.