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Habeas corpus preventivo

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Por Redação
Atualização:

O Banco Central divulgou hoje uma nota sobre a evolução das contas externas brasileiras ("Evolução dos indicadores de sustentabilidade externa - atualização"). Como o cenário é de deterioração acelerada do balanço em contas correntes e como essa deterioração se deve à política monetária, que contribuiu, fortemente, para manter taxa de câmbio valorizado, o BC tentou produzir um verdadeiro habeas corpus preventivo.

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Quem lê o texto depara com afirmações do tipo: 1) "O crescimento do passivo externo brasileiro reflete, indubitavelmente, a melhoria dos fundamentos macroeconômicos do país"; e 2) "Na ausência de uma elevação da poupança nacional, ou seja, crescimento da renda superior ao crescimento do consumo, a utilização da poupança externa vem permitindo maior dinamismo dos investimentos." (Nota: "poupança externa" aqui é usado como um estranho sinônimo para déficit em transações correntes). Para ler a íntegra: www.bcb.gov.br, aba de notícias (o link, infelizmente, não está entrando na ferramenta do IG).

Sei, sei... Pelo que entendi, vamos morrer afogados lá na frente, mas com fundamentos sensacionais.

Acompanho há quase quatro décadas as recorrentes crises cambiais brasileiras. Em todas, claro, os tempos eram outros e os fundamentos macroeconômicos, mais sólidos.

Aproveito para reproduzir, por oportuna, aí embaixo, entrevista do economista Simão Silber ao jornalista Leandro Modé, publicada no Estado de S. Paulo, em 29 de julho. Silber é doutor pela Universidade Yale, professor da Faculdade de Economia da USP e pesquisador da Fundação Instituto de Pesquisas (Fipe), também da USP, da qual já foi presidente. É a visão de um experiente e isento especialista em economia internacional e comércio exterior (ele não é um "desenvolvimentista"). Silber considera que, no ritmo em que vai, o déficit louvado pelo BC só é sustentável no curto prazo.

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O déficit em conta corrente preocupa? Claro. O problema não é ter déficit, mas a trajetória é fulminante. Nos primeiros seis meses do ano passado, houve superávit de US$ 2,4 bilhões. Isso foi substituído por um déficit de US$ 17,4 bilhões. É um mergulho no precipício. O governo diz que não é problema por causa do que entrou no País como investimento estrangeiro direto: US$ 16 bilhões no semestre. Mas esse cálculo é meio maroto, pois as empresas brasileiras investiram no exterior US$ 8,5 bilhões. Ou seja, o saldo líquido não é US$ 16 bilhões. O que, então, tem segurado o balanço de pagamentos? O diferencial da taxa de juros brasileira com o exterior. Isso fez a conta de capital ser superavitária no semestre em US$ 40,7 bilhões. Essa trajetória, portanto, não é sustentável no longo prazo e sua forma de correção não está disponível no momento porque o governo não quer cortar gastos. Quando isso ocorre, sobra para o Banco Central o trabalho sujo de, sozinho, tentar segurar a inflação. Daí põe o juro lá em cima. Por arbitragem, entra dinheiro aqui, o que valoriza o real, piora as exportações e faz crescer muito as importações. Nos últimos 12 meses, a importação cresceu acima de 40% e a exportação, 18%. No curto prazo, há funding para financiar. Num prazo maior, 2 ou 3 anos, tenho seriíssimas dúvidas.

O fato de o País ter hoje um sistema de câmbio flutuante não ameniza essa tendência? Esse argumento só funcionaria se o juro não fosse tão alto. Veja o que ocorre hoje: o déficit externo está aí, grandão, e mesmo assim o real continua se valorizando.

O juro alto, então, impede o funcionamento adequado do sistema de câmbio flutuante? Na direção de uma desvalorização do real, sim. Na medida em que o BC sinalizou que manterá os juros muito altos neste ano e no ano que vem, se dá um horizonte para o aplicador. Eles vêm para cá e fazem uma farra. Em algum momento, o risco é a expectativa de o aplicador mudar. Essas coisas ocorrem de uma maneira que na literatura chamamos de overshooting (sobreimpulso). Se daqui um ano, um ano e meio, o mercado financeiro se der conta de que a trajetória do real, daquele instante para frente, será de desvalorização, tentará antecipar isso mandando dinheiro para fora. Ou seja, de uma hora para a outra, vai estourar o câmbio. Não vai ser gradual. No curto prazo, o câmbio depende basicamente do mercado financeiro. O movimento financeiro é muito maior do que o comercial. Hoje, a proporção é de US$ 3 para US$ 1. O Brasil não está exportando mais. A receita de exportação só está crescendo porque o preço das commodities ainda está subindo. Se a desaceleração mundial for mais intensa, pode haver um impacto sobre os preços das commodities. Aí não tenha dúvidas: o real vai desvalorizar.

Como o Sr. vê a recente queda de preço das commodities? Para nós, o mais importante são as commodities alimentícias, que dependem muito mais da demanda da China, da Índia e de outros países em desenvolvimento. Nas últimas semanas, esse movimento de queda foi concentrado no petróleo e nas commodities metálicas. Mas as agrícolas podem cair 10%, 15%.

Isso aumentaria nosso déficit em conta corrente? Provavelmente, sim. Se a tendência de preço for de queda, isso vai afetar nossa trajetória de câmbio.

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O que o governo faria nesse caso? Na minha opinião, interviria no mercado para evitar uma desvalorização acentuada do real, que colocaria mais lenha na fogueira da inflação. O câmbio, hoje, ajuda no controle da inflação.

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Esses mais de US$ 200 bilhões de reservas dão ao governo boa capacidade para intervir no câmbio? No curto prazo, sim. No longo, não faz refresco. Os estrangeiros, entre capital fixo, dinheiro em Bolsa, títulos públicos, etc., têm mais de US$ 500 bilhões aqui. Além disso, os brasileiros podem mandar dinheiro para fora. Ou seja, em um eventual pânico, poderia sair cerca de US$ 1 trilhão. US$ 200 bilhões não fazem cócegas. Não creio que isso ocorrerá, mas o fato é que não compramos o seguro definitivo.

O que seria um seguro definitivo? Ter reservas extremamente elevadas. US$ 200 bilhões é muito bom, mas, dado o tamanho do mercado financeiro, é pouco.

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