José Paulo Kupfer
16 de dezembro de 2008 | 11h44
A tropa de elite econômica do governo FHC, que expressa o melhor do pensamento neoliberal no Brasil, se reuniu para produzir um livro online, de acesso livre, sobre a crise econômica mundial, seus efeitos no País e as estratégias para evitá-los. É uma iniciativa louvável, que deveria estimular outras experiências no gênero. Mas o conteúdo de “Como reagir à crise? Políticas econômicas para o Brasil” decepciona (clique no título para acessar).
Organizado por Edmar Bacha e Ilan Godlfajn, expoentes desse pensamento, o livro reúne 17 textos de 20 autores e é uma produção do Instituto de Estudos de Política Econômica/Casa das Garças (Iepe/CdG, do Rio de Janeiro. O Iepe/Cdg é um centro de estudo, pesquisa e difusão de idéias econômicas, que congrega, na maior parte, acadêmicos ou ex-acadêmicos de prestígio, ligados ao departamento de economia da PUC-RJ. O núcleo duro da instituição é formado por economistas que ocuparam altos cargos de governo (e de organismos internacionais), e hoje se dedicam a atividades financeiras, como executivos de bancos, consultores ou gestores de recursos. Alguns ainda dividem esse atividade principal com as salas de aula.
Não é ausência de diversidade nas visões da crise no mundo e das melhores estratégias para o Brasil evitar seus piores efeitos que decepciona no livro do Iepe/CdG. Não há mesmo diversidade, com uma ou outra notável exceção, mas isso é do jogo. O que decepciona é a superficialidade da maioria das análises. (Parênteses: há notícias de que Persio Arida, o intelectualmente mais inquieto da turma, estaria produzindo um texto para o livro, que não ficara pronto para o lançamento da primeira versão. Mas não há, nem no corpo do livro, nem no site do Iepe/CdG, menção ao fato, nem indicação de que, nas eventuais novas versões, algum texto de Arida estará presente.)
Autores que marcaram a história do pensamento econômico brasileiro, há não muito mais de três décadas, com trabalhos inovadores e corajosos, contestando, com consistência, o oba-oba econômico da ditadura militar, oferecem agora artiguetes com súmulas padronizadas de clichês neoliberais.
Pode ser que a intenção dos organizadores da obra tenha sido mesmo a do combate político. Textos curtos, em estilo “para jornal”, com muitas afirmações sem desenvolvimento da argumentação que leva a elas, sem ou com escassas referências bibliográficas, enquadram-se no formato. Mas, de qualquer maneira, fica parecendo que, concentrados na prática da vida financeira, perderam a embocadura teórica. Ou andam sem tempo para se dedicar ao estudo e à pesquisa, Em resumo, a maioria dos escritos dá a impressão de que está ali para cumprir tabela.
A conclusão do pequeno artigo de Armínio Fraga, ilustra essa sensação desconfortável:
“Concluindo, penso que para o Brasil neste momento seria recomendável uma
postura mais conservadora na expansão fiscal e creditícia, de forma a (i)
minimizar riscos em um cenário de aprofundamento da crise internacional, e (ii)
possibilitar uma queda na taxa de juros doméstica. Este progresso seria ainda
mais impressionante e mais provável se o executivo e o legislativo tiverem a
visão e a coragem de abordar de forma definitiva os desequilíbrios de longo
prazo do nosso regime fiscal, em especial os da previdência e do inchaço da
máquina pública.”
Tirando a menção à crise internacional, que é uma novidade, o resto é o diagnóstico de sempre, apontando para os suspeitos de sempre – com ou sem aprofundamento de crise, doméstica ou internacional.
O incômodo é que essa é a base da argumentação de quase todos os artigos. O roteiro é o seguinte: a crise externa vai ter impactos no Brasil; não se sabe de quanto, mas a economia crescerá menos; ao crescer menos, reduzirá a arrecadação tributária; a redução da arrecadação exigirá corte nos gastos públicos correntes, sem o que o investimento público, que já é baixo, ficará ainda mais prejudicado e as taxas de juros, que são altas, não terão como baixar. Em resumo: querer crescer e adotar estratégias para tanto, enquanto o mundo anda para trás, é um erro.
Há também uma repetição na análise da origem da crise. Os argumentos convergem para a constatação de que, sim, houve excessos na desregulamentação do sistema financeiro, especialmente no segmento não-comercial dos bancos, e despreocupação com os excessos de injeção de liquidez nos canais financeiros. Mas, segundo os autores, é preciso muita cautela no uso do diagnóstico para a correção das falhas. Na visão deles, este ambiente, agora demonizado, foi “peça fundamental para viabilizar o longo ciclo de expansão econômica mundial” anterior ao crash de 2008. Ou seja, devagar com a reforma do sistema financeiro.
OK, ainda que se discorde do diagnóstico, ele faz sentido, dentro de um tipo de visão da economia. O problema, que denuncia sua pouca utilidade, é ser tão genérico, que poderia ser usado, para se encaixar na tal visão, ontem, hoje ou amanhã, seja qual for o cenário e o ambiente econômico. Mais ou menos como certas pautas jornalísticas – compras e panetone no Natal, preparativos para o carnaval, ovos de chocolate artesanais na Páscoa, em que a população vai usar o 13º. salário etc. etc. Se a gente excluir o gancho temporal, a história é sempre mais ou menos o mesmo.
Um pouco fora do padrão, só mesmo o artigo de Gustavo Franco. O mais briguento da tropa de elite do tucanato neoliberal, diferentemente dos demais, centra fogo em sugestões práticas: desmontagem dos compulsórios, redefinição do mecanismo do overnight, com alguma “punição” para o excesso de recursos dos bancos repassados ao Banco Central; medidas tributárias, não apenas com base no IOF, com o intuito de reduzir o spread bancário (“agora que terminaram as ilusões sobre os efeitos que a lei de falências teria sobre a inadimplência e o spread”); estender alguma forma de garantia temporária ao interbancário, possivelmente envolvendo o Fundo Garantidor de Crédito (FGC).
Gustavo também discorda do diagnóstico de seus pares na área fiscal. Considera que o encolhimento do déficit nominal e da relação dívida/PIB são significativos, “embora não sensacionais”, mas suficientes para que se possa afirmar que “não temos fraquezas fiscais” e que, portanto, não é por aí que se vai amplificar uma crise vinda do exterior e transformá-la numa crise doméstica. E defende cortes de impostos sobre faturamento e redução de encargos trabalhistas, como forma ideal de impedir uma interrupção dos gastos de capital das empresas. Pelo menos, sai do genérico.
Tudo considerado, a utilidade de “Como reagir à crise?” é baixa. Em relação ao potencial intelectual de seus autores, é baixíssima. Uma pena.
* * *
Para mim, que acompanhei, já como profissional, o nascimento público e a trajetória inicial de economistas como Pedro Malan e Edmar Bacha, fica um travo amargo. Acho que eles passaram muito tempo no exterior e perderam um pouco o pé da realidade brasileira. A passagem pelo governo, num período em que a hiperinflação era um dragão a ser preliminarmente vencido, também pode ter contribuído para desviar o foco das questões de organização da economia e do bem-estar social. E a decisão pessoal de garantir o ganha-pão prestando serviço ao setor financeiro, fechou o afastamento das preocupações e dos temas de preferência da juventude. Mas ninguém tem o direito de esquecer que, com seus estudos inovadores sobre distribuição de renda e, se me permitem a licença “poética”, em “macroeconomia social”, eles enfrentaram a ditadura com vigor técnico e coragem física. A resistência à ditadura e, no fim das contas, a redemocratização, muito devem a eles.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.