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A Argentina e a crise chilena de 82

Por Agencia Estado
Atualização:

Quase dois meses depois da desvalorização do peso e do fim de pouco mais de uma década de conversibilidade, a Argentina pode transformar-se no Chile dos anos 82/83, período em que ocorreu a primeira das crises cambiais em países emergentes. Em meados de 82, o Chile enfrentou uma inesperada e abrupta saída de um sistema de câmbio fixo, com efeitos quase catastróficos que produziram quebradeiras de bancos e indústrias do país. Essa foi uma das muitas crises que sacudiram a América Latina nos anos 80, classificados posteriormente como a "década perdida". O que aconteceu no Chile naquela época ? citado diversas vezes como exemplo pelo presidente argentino Eduardo Duhalde, logo depois de sua posse ? pode mostrar alguns, senão muitos, elementos da atual situação argentina, principalmente no aspecto financeiro. Para evitar que o Chile mergulhasse no caos econômico, social e político, o Estado interveio no sistema bancário, fechou parcialmente a economia e impôs um sistema de câmbio duplo, que favorecia, principalmente, os mais endividados. O plano do governo chileno incluía ainda, além de apoio direto os bancos (transferência de recursos), uma flexibilização de normas bancárias e a reestruturação da dívida de pessoas físicas e jurídicas. Entre 1982 e 1986, o Banco Central chileno liquidou 16 instituições financeiras que se encontravam em estado de insolvência absoluta. O procedimento dessa liquidação consistiu, entre outras medidas, na reestruturação da organização e na administração da carteira de créditos com o objetivo de maximizar o retorno. Parte desse programa representou, de acordo com estudos realizados no período, o segundo maior (10,5% do PIB) custo que o Chile pagou para enfrentar a crise. Calcula-se, no entanto, que o custo do programa de resgate aos bancos tenha representado pelo menos 35,2% de PIB. A liquidação de instituições financeiras, por exemplo, teria custado 10,5% do PIB; a compra de carteiras de risco, outros 6,0%; o programa do "dólar diferenciado", 14,7% ; a reprogramação das dívidas, 1,6%; e a capitalização popular, outros 2,4%. Pré-crise Em 1979, o Chile chegou a adotar o tipo de câmbio fixo, mas sem a conversibilidade posteriormente adotada pela Argentina. A partir daquele ano, o país começou a crescer a uma taxa média de 7%, alimentado, principalmente, por grandes fluxos de capital, atraídos por fatores externos (excesso de liquidez no mundo) como internos (privatizações de empresas públicas). Mas o governo chileno pecou na falta de supervisão e controle, o que produziu uma série de distorções no sistema financeiro, principalmente em relação a créditos e financiamentos para o setor produtivo. "Parte da crise de 82 decorre desses fatores", diz um estudo do BBVA Banco BHIF. Na Argentina da conversibilidade (primeiro anos da década de 90) ocorreram fatos similares. Mas no Chile de 82, contrariamente à Argentina de 2002, a dívida externa estava concentrada fundamentalmente no setor privado. Em 1981, por exemplo, ela representava 65% do total. Dessa forma, o déficit em conta corrente ao final de 1981 atingiu 14,5% do PIB, quando o aceitável em teoria econômica é de 5%. Outro fator que detonou a crise de 82 no Chile foi a Lei Trabalhista de 1979, que consagrou a indexação total dos salários à inflação passada. Efeitos da crise Com a desvalorização em junho de 82, o Chile mergulhou, então, em uma de suas maiores crises econômicas e financeiras de sua história. Depois de crescer 6,2% em 1981, o PIB despencou 13,2% em 1982 e 2,8% em 1983. O gasto interno, que havia crescido 11,6% em 1981, desmoronou 24,1% no ano seguinte. A Argentina, que sequer conseguiu aprovar o Orçamento deste ano, pode, de acordo com estimativas extra-oficiais, apresentar uma retração próxima de 10%, embora o governo estime uma contração de 5%. Por isso, o Fundo Monetário Internacional exigiu do governo Duhalde números mais realistas antes de começar a negociar um pedido de socorro ao país. Com a crise cambial, o governo chileno acabou perdendo o controle dos preços e a inflação alcançou uma taxa média de 23,3% entre 1982 e 1985. "Não fosse a deprimida demanda, o custo de vida no Chile naquele período teria alcançado níveis superiores a esse", diz o estudo do BBVA. Já a Argentina, com economia mais aberta do que o Chile de 82, poderá registrar este ano uma inflação acima de 30%, de acordo com estimativas de economistas independentes. O governo Duhalde prevê uma taxa não superior a 15%, mas o FMI não acredita. Mas os efeitos da desvalorização não se restringiram apenas a alguns fundamentos macroeconômicos. O desemprego, por exemplo, chegou a 19,6% em 1982, de um patamar de 11,3% em 1981. Descontados os programas especiais de emprego, a taxa chegaria facilmente aos 30%. Na Argentina, depois de mais de dez anos de conversibilidade, período no qual a desocupação foi aumentando paulatinamente de patamares próximos a 8%, os índices chegam hoje a níveis assustadores de 22% a 25%, em algumas regiões do país. Câmbio Logo depois da desvalorização, e depois de o peso ter sido fixado em 46 pesos por dólar (39 pesos por dólar antes), o governo chileno adotou o tipo de câmbio duplo, que durou até 1987 e incluía um programa denominado "dólar preferencial", inferior ao do mercado e que podia ser adotado por pessoas físicas e jurídicas endividadas em dólares para saldar seus compromissos. Este, de acordo com o BBVA Banco Bhif foi o programa de socorro mais oneroso para o Estado, representando 14,7% do PIB. Anos depois, o tipo de câmbio começou a flutuar em um sistema de bandas cambiais, até 1998. Posteriormente, o Chile adotou a livre flutuação. Na Argentina, o presidente Eduardo Duhalde determinou algo semelhante ao pesificar a economia, permitindo que as pessoas pagassem seus compromissos na base de 1 peso por um dólar mesmo a taxa de câmbio tendo disparado para 2 pesos por dólar (desvalorização de 50%). A diferença com relação ao Chile é que o governo argentino não definiu até agora que pagará a conta da desvalorização. O Chile decidiu também fechar o mercado, aumentando as alíquotas de importação de 10,1%, em 1979, para uma alíquota média de 20%, em 1983, e 35% em 1984. Com isso, houve uma brusca reversão das contas externas. Em 1981, por exemplo, a balança comercial passou de um déficit de 10,3% do PIB para 1,9% em 1982 e, depois, para um superávit de 2,7% do PIB em 1983. Na área de comércio exterior, porém, a Argentina ainda não tomou nenhuma decisão. Em plena crise de 82, o governo chileno decidiu também eliminar a conta de capitais, para atenuar a dramática redução do fluxo externo. O depósito compulsório sobre os créditos de curto prazo, por exemplo, acabou sendo reduzido e foi oferecido pagamento de juros sobre os mesmos. Permitiu-se ainda que os bancos tomassem posições em dólares. Mas isso tudo não serviu quase de nada para que o fluxo de capital aumentasse. Assim, ao final desse ano, o governo voltou atrás e começou a controlar de novo o fluxo. Em decorrência das intervenções no sistema financeiro, grande parte da dívida externa privada se transformou em dívida externa pública, revertendo o equilíbrio das contas públicas até antes da crise. Para reduzir essa dívida, o governo optou pelos chamados debt-equity swaps, mecanismo com o qual se ofereceu aos investidores estrangeiros detentores de dívida chilena a recompra de títulos no valor par, mas em pesos chilenos, com a condição de que o capital permanecesse por um tempo determinado em investimentos dentro do país. Anos depois, com a estabilização da economia, a solução chilena para superar a crise acabou sendo reconhecida. A Argentina, por sua vez, decretou moratória da dívida externa. A princípio, o governo argentino está disposto a pagar os serviços de sua dívida apenas aos organismos multilaterais de financiamento, como o FMI, Banco Mundial e o BID. Leia o especial

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