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'A Dilma tem de enfrentar o panelaço que lhe cabe'

Para ex-ministro, presidente tem de ir à TV justificar suas medidas e retomar a agenda do crescimento

Por João Villaverde
Atualização:

A grande “tragédia” de 2015 na economia não é a provável repetição de um déficit fiscal do governo, mas a transformação do ajuste fiscal numa obsessão. “O ajuste fiscal é uma miragem. Sempre que parece que nos aproximamos dele, ele escapa e fica mais distante. Foi o que aconteceu no primeiro semestre. Essa obsessão é uma tragédia porque não há ajuste fiscal sem crescimento”, afirmou o economista Antônio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento. “É preciso devolver à sociedade a perspectiva do crescimento”, disse ele em entrevista concedida ao Estado em seu escritório em São Paulo.

Ministro da Fazenda entre 1966 e 1974 e do Planejamento entre 1979 e 1985, Delfim Netto, hoje com 87 anos, afirma que o governo Dilma perdeu “completamente sua credibilidade” depois de manobras contábeis, como as “pedaladas fiscais”, e isso dificulta que medidas importantes, como o plano de concessões de logística ao setor privado, sejam levadas a sério.

Retomada: para o ex-ministro Delfim Netto, é preciso devolver à sociedade a perspectiva de crescimento da economia Foto: Werther Santana/Estadão

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Conselheiro econômico do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com quem mantém contato até hoje, Delfim é considerado, há mais de 50 anos, uma referência no pensamento econômico brasileiro, por transitar entre os dois grupos que se opõem: os desenvolvimentistas, encarnados pelo ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, e pelo atual ministro Nelson Barbosa; e os liberais ortodoxos, cujo representante mais ilustre hoje é o atual ministro da Fazenda, Joaquim Levy.

Na entrevista, Delfim é direto ao atacar a política econômica da presidente Dilma Rousseff, de quem está afastado há cerca de dois anos. O economista destila críticas duras ao governo federal. Apesar desse posicionamento, Delfim avaliou como “golpe” o possível impeachment da presidente por causa das “pedaladas fiscais” encontradas nas contas federais de 2014. “As pedaladas ocorreram. Mas elas sempre ocorreram, mesmo antes de FHC. Tirá-la por conta disso é golpe.” A seguir, os principais trechos da entrevista.

O governo, desde o primeiro dia do ano, só fala em ajuste fiscal. Mas mesmo depois de aumentar impostos, restringir benefícios sociais e cortar gastos, o resultado só piora. O que acontece? A rigor, o ajuste fiscal nunca foi feito no Brasil. À medida que há sucesso econômico, nenhum presidente faz ajuste fiscal. O Sarney fez lá seu ajuste, numa situação bem delicada, sem poder e sem nada. Depois, Collor fez uma abertura comercial bem apressada, mas com efeito positivo para a produtividade. O Itamar é que é um grande injustiçado. Ele fez superávits primários de 6% do PIB (Produto Interno Bruto) e acumulou reservas para poder viabilizar o Plano Real, que realmente foi brilhante, especialmente pela transparência. O governo na época soube explicar para a população cada passo que foi dado. O primeiro mandato do Fernando (Henrique Cardoso) foi de déficits primários. Quando o Brasil quebrou, em 1998, e veio o FMI (Fundo Monetário Internacional), é que o quadro melhorou um pouco. Sob Lula, o primeiro mandato teve um superávit primário um pouquinho maior, depois foi diminuindo. O ajuste fiscal nunca foi feito, na prática.

E o quadro piorou em 2014? O Ministério da Fazenda foi para a fogueira para garantir a eleição de 2014. Existem documentos da Secretaria de Política Econômica (SPE) mostrando para onde estava indo a economia. Guido (Mantega) e (Márcio) Holland (ex-secretário de Política Econômica) sabiam disso. Mas isso foi apenas o final do processo. No fundo, as coisas estão se desarrumando há muito tempo.

Desde quando que o quadro foi piorando? Dilma fez um resultado fiscal forte no primeiro ano (2011), mas a partir de 2012 as coisas foram mudando. Há um ponto de inflexão: dezembro de 2012. Ali fizeram um ato de alquimia, transformando dívida pública em resultado primário. Foi uma porcaria para cobrir porcaria ainda maior.

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E o governo nunca mais saiu dessa ciranda na área fiscal no primeiro mandato, não é? A partir daí, o governo foi se enrolando. Agora chegamos na situação de hoje porque, além de tudo isso, 2014 foi uma política deliberada para se reeleger. O equívoco é que ela (Dilma) pensou que se reelegeria e haveria tempo de arrumar tudo para voltar a vencer as eleições em 2018. A estratégia falhou.

E agora? Pois é... Dilma, quando tomou posse para o segundo mandato, precisou fazer uma correção de rota. Mas ela foi incapaz de reconhecer sua herança. Assim, perdeu completamente credibilidade. Isso coincidiu com um ganho de protagonismo do Legislativo. O Legislativo ‘predou’ o Executivo e continuará fazendo isso. Além disso, parece que todo mundo hoje esqueceu o que as pessoas fazem na hora de crise. Uma empresa em dificuldade não paga imposto porque sabe que em algum momento virá um novo Refis. Depois, ela demite o trabalhador. Era natural que a receita cairia mais depressa do que o PIB.

O governo tentou equilibrar isso neste ano, com aumentos de impostos e medidas para diminuir gastos, certo? Sim, e todas essas medidas já estavam prontas no primeiro mandato. Essas medidas de seguro-desemprego, de abono salarial, tudo isso estava sendo preparado pelo próprio governo para ser colocado em prática agora. Agora, é preciso ter um ajuste estrutural. 

O governo fala em uma meta fiscal de apenas 0,15% do PIB. Quando o governo deixa a porta aberta para abater outros R$ 16 bilhões dessa meta, ele está dizendo que caminhamos para um déficit de 0,3% do PIB. Não é algo pequeno, mas também não é uma tragédia. A tragédia é ter transformado o ajuste fiscal em uma obsessão. O ajuste fiscal é uma miragem. Sempre que se está chegando perto dele, ele escapa e fica distante. É preciso devolver à sociedade a perspectiva de crescimento.

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Como fazer isso? No câmbio ocorre o movimento correto (a desvalorização). O programa de concessões é ótimo, muito bem feito, assim como o Plano Safra e o programa de exportações. Mas nada disso teve a menor a repercussão. Como o governo perdeu a credibilidade, esses três programas, que são bons mesmo, não tiveram repercussão. Ninguém leva a sério nada que o governo fala e ele está cometendo um erro: não vai recuperar credibilidade com marketing. Precisa dar demonstração clara que tem maioria, que com ela vai produzir coisas importantes, como a reforma do ICMS, a simplificação do PIS/Cofins e também propostas da velha CUT, que é dar liberdade de negociação entre sindicato e empresa. Não há nada no Brasil que atrase mais o crescimento do que o fato de que nenhuma empresa sabe hoje qual é exatamente seu passivo trabalhista. As tolices que foram ditas sobre a terceirização mostram que o debate não tem mais cérebro, só fígado. Outra coisa: precisamos estabelecer uma idade mínima para as aposentadorias. O governo precisa fazer a guerra de uma vez só: vai à televisão e defende essa medida, explica suas razões e desmonta mitos.

Depois de quase cinco anos de governo, esse não parece ser o estilo Dilma de governar... É preciso dar para as pessoas uma perspectiva de crescimento. Sem isso... olha, crescimento e credibilidade são dois lados da mesma moeda. Sem credibilidade não há crescimento, o que afunda ainda mais a confiança e a credibilidade e assim entra numa espiral para baixo. Por outro lado, o crescimento aumenta a credibilidade, que empurra mais o crescimento e assim por diante. Ninguém fica no ponto morto: ou engata a primeira ou a marcha à ré vem sozinha.

E então?Estamos caminhando para uma queda de 2,3% a 2,4% do PIB e quando todo mundo espera isso, a expectativa se realiza. Dilma é absolutamente honesta. Na parte administrativa pode ter lá seus problemas, mas ela é honesta. O problema é que ela perdeu o respeito da sociedade por causa do cavalo de pau que deu na economia. Veja bem: ela ganhou a reeleição com um pouquinho mais de um terço dos votos. Um pouco menos de um terço foi para o Aécio (Neves, PSDB), e um terço não votou em ninguém. Esse terço final não entende segundo turno e, por isso, esse pessoal deve ficar de “segunda época”, de recuperação mesmo, para voltar em 2018 e aprender a votar. Segundo turno a gente vota no menos pior. Mas, enfim, Dilma começou esse mandato com apenas um terço dos eleitores realmente com ela. Quando ela fez o cavalo de pau na economia, os eleitores dela foram perdidos. Ela precisa agora assumir o protagonismo, tem de enfrentar o panelaço que lhe cabe, ir à televisão e justificar suas medidas. Não acredito nessa coisa de palanque, isso é pregar para convertido, e para cada vez menos convertidos. Ela precisa realmente enfrentar as coisas. No momento em que houver esperança de que haverá crescimento, tudo isso muda, economia é expectativa.

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Neste mês, o governo vai enfrentar o delicado julgamento de suas contas no TCU, que inclui as pedaladas fiscais. O que o sr. acha disso? Qualquer solução fora do regime fiscal institucional, qualquer violação é condenável. Já devíamos ter aprendido isso. Não gosto do que está acontecendo. Que fique claro: houve pedalada, isso é indiscutível. Mas usar as pedaladas para fazer impeachment é golpe. Governo patinar por três anos é melhor do que isso. Achar que isso vai ser igual ao que foi com Collor... não será. As pedaladas vêm desde antes do Fernando (FHC). Todas as contas federais contam com práticas assim.

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