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A fórmula que destruiu Wall Street

Instituições financeiras calculavam risco de hipotecas de um jeito que só funcionava com mercado em alta

Por Renato Cruz
Atualização:

De quem é a culpa pela crise? Do consumismo desenfreado que levou a sociedade americana a contrair dívidas várias vezes acima de sua capacidade pagamento? Da ganância dos bancos, que buscaram ganhos a qualquer preço? Da omissão das autoridades monetárias, que deixaram a bolha de crédito se expandir e não acompanharam com a atenção devida o que acontecia nos mercados? Da nova etapa da globalização, surgida no bojo do desenvolvimento tecnológico, que permitiu ao dinheiro rodar o mundo sem barreiras, tornando obsoleta qualquer forma de controle? Não há, claro, uma só resposta. Mas, segundo a revista americana Wired, a maior culpada é uma fórmula matemática. O nome dela é função de cópula gaussiana (em estatística, cópula que dizer outra coisa: a combinação em um único número do comportamento de duas ou mais variáveis). Criada por David X. Li, economista chinês com doutorado em estatística pela Universidade de Waterloo, no Canadá, e publicada pela primeira vez em 2000, ela foi vista como uma forma simples de se tratar um problema complexo: como calcular o risco de um conjunto de financiamentos garantidos por hipotecas. A fórmula criada por Li permitiu que os bancos revendessem as dívidas para terceiros, reempacotando hipotecas de alto risco em papéis que chegavam a ser considerados de risco zero (ou triplo A, nome dado pelas agências de classificação). Isso criou uma euforia no mercado, que negociou trilhões de dólares em papéis que ofereciam retorno alto e comissões gordas, sem ameaça de calote, atraindo investidores conservadores como fundos de pensão. Mas a fórmula tinha um problema. Para avaliar o risco, ela tomou como base o comportamento histórico dos seguros contra inadimplência de hipotecas, que era bastante recente, com menos de 10 anos. Na última década, o mercado imobiliário americano só subiu e, por causa disso, os dados não mostravam o que poderia acontecer com a inadimplência se os preços começassem a cair. Quando o mercado vai bem, um mutuário deixa de pagar suas prestações por motivos pessoais. Quando perde o emprego ou fica doente, por exemplo. Existe pouca probabilidade de outros ficarem inadimplentes ao mesmo tempo. A fórmula não previu que, se as casas começam a perder valor, se a economia passa a apontar para baixo e muitas pessoas perdem seus empregos, a chance de um grande número de mutuários deixar de pagar suas contas ao mesmo tempo se torna grande. Com isso, os papéis que tinham classificação triplo A viraram pó, e as instituições financeiras se viram com um rombo gigantesco, que não estavam preparadas para cobrir. Mas até onde a culpa é da fórmula? "Não adianta aplicar um modelo se o usuário não consegue fazer também uma análise qualitativa", afirmou Ricardo Humberto Rocha, professor da Fundação Instituto de Administração (FIA). "Não foi o modelo que errou, mas quem julgou os resultados. Os bancos empregam gente brilhante, mas muito jovem, sem experiência de mercado." Todo modelo matemático é uma simplificação da realidade, que permite abordar um problema que parecia complexo demais. Alguns econometristas (que aplicam métodos estatísticos à economia) reclamaram da matéria da Wired,dizendo que a função de Li era uma ferramenta útil na maior parte das situações, apesar de não avaliar condições macroeconômicas que podem afetar a todos. Parte dos problemas que deram origem à crise está ligada a fatores que as instituições financeiras não entenderam, e parte a fatores que não queriam entender. As hipotecas de risco permitiam aos bancos e aos fundos terem um retorno alto, num ambiente de juros baixos, e o empacotamento dos empréstimos em derivativos que recebiam carimbo triplo A fazia com que eles pudessem investir nesse mercado sem limite de exposição. "A maior catástrofe que os gestores fizeram foi assumir uma curva normal de distribuição, ou gaussiana, para calcular o risco", afirmou Felipe Ayres, diretor da Hilltop Park Associates do Brasil. "Ela ignora eventos extremos." Os derivativos baseados em hipotecas eram vistos, na época em que o mercado se expandia, como uma forma de compartilhar o risco, e dessa forma garantir a segurança das operações de crédito. Com o estouro da bolha imobiliária, esses papéis acabaram se tornando um jeito de esconder o risco. Os empréstimos empacotados e reempacotados criaram uma crise de confiança que acabou gerando a paralisia de crédito que se viu no fim do ano passado. "A qualidade do tomador de crédito não era contemplada no modelo", apontou Ernesto Lozardo, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Os próprios juros altos cobrados dos mutuários nas hipotecas subprime, pessoas com nome sujo ou sem renda comprovada, eram um indicador de que o risco era alto. Segundo uma matéria publicada pelo Wall Street Journal em 2005, bem antes do estouro da bolha, o próprio Li assumia que a ferramenta de análise tinha falhas: "A parte mais perigosa é quando as pessoas acreditam em tudo que sai dela." Em 2008, ele se mudou para Pequim, para trabalhar no banco China International Capital Corporation, e passou a evitar fazer comentários sobre a fórmula que criou. FRASES Ricardo Humberto Rocha Professor da FIA "Não adianta aplicar um modelo se o usuário não consegue fazer também uma análise qualitativa" "Não foi o modelo que errou, mas quem julgou os resultados. Os bancos empregam gente brilhante, mas muito jovem, sem experiência de mercado" Ernesto Lozardo Professor da FGV "A qualidade do tomador de crédito não era contemplada no modelo"

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