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'A marcha da insensatez' - parte II

Em artigo publicado neste jornal em 4 de fevereiro deste ano ('A marcha da insensatez' - parte I) tomei por empréstimo o primoroso título da obra da escritora e historiadora norte-americana Barbara Tuchman, para destacar uma evidência de insensatez na política tributária brasileira, que consiste no omisso e confuso tratamento dispensado ao planejamento tributário. Retorno ao tema, em virtude da profusão de exemplos de insensatez tributária. Na França, o presidente François Hollande, reproduzindo a demagógica criação do imposto sobre grandes fortunas, nos anos 1980, pelo também socialista presidente François Mitterrand, acaba de elevar a alíquota máxima do Imposto de Renda das pessoas físicas para 75%. A iniciativa, além de confiscatória, estimulará abertamente o planejamento tributário e a mudança de domicílio fiscal (Gérard Depardieu, mais importante ator francês, já assumiu a cidadania russa, sob as bênçãos de Vladimir Putin). Tal como foi concebida, a medida será contraproducente e não vai, por isso mesmo, reequilibrar as desastradas contas públicas francesas. Quem viver verá. A tributação pode ser um instrumento para redução das desigualdades, desde que exercida nos limites da razoabilidade. Não sem razão se diz que os paraísos fiscais, de tão notória nocividade, só existem porque foram precedidos por infernos fiscais. A insensatez tributária não se revela apenas por meio da extração desproporcional, como no exemplo francês. Pode manifestar-se, também, na falta de clareza do texto legal ou na indisposição do Fisco de atender, em tempo hábil, às demandas do contribuinte. Se clareza remete à moralidade, presteza é atributo da eficiência e ambas se inscrevem no âmbito dos princípios constitucionais da administração pública, que também alcançam a legalidade, a impessoalidade e a publicidade. A guerra fiscal do ICMS atingiu contornos inimagináveis. Nesse contexto, a Resolução n.º 13, de 2012, do Senado federal constitui um exemplo de falta de clareza, potencializada por uma solução de baixíssima qualidade técnica, sem falar de sua presumida inconstitucionalidade. Na chamada guerra dos portos, a obsessão dos Estados pela atração, a qualquer custo, de investimentos passou inacreditavelmente a privilegiar o produto importado vis-à-vis o nacional, constituindo um raro caso de discriminação territorial inversa. Na ânsia de enfrentar essa questão, promulgou-se uma resolução do Senado, em lugar de uma lei complementar, de tramitação legislativa mais exigente, conforme preconiza o artigo 155, § 2.º, inciso XII, alínea g da Constituição. Não bastasse a inconstitucionalidade da norma, construiu-se um cipoal de requisitos burocráticos atentatórios ao bom senso, com destaque para a obrigação de identificar as margens dos negócios visando a apurar um caricato "conteúdo nacional", ofendendo uma elementar regra comercial. A Justiça, felizmente, está afastando as absurdas exigências, não sendo desarrazoado que o Supremo Tribunal Federal (STF) venha a considerar inconstitucional a norma aprovada. De resto, por que só a guerra dos portos é indesejada? Seriam legais, ao contrário do que tem reiteradamente decidido o STF, as demais formas de guerra fiscal? Não é bem assim. O que falta, em verdade, é disposição, por parte do poder público, para buscar uma solução constitucional, abrangente e eficaz para a ilegal guerra fiscal. A preferência é pela insensatez apressada. A demora na solução de consultas tributárias, formuladas pelos contribuintes, converteu-se em algo patológico. Seria a legislação tão complexa que nem mesmo o Fisco sabe adequadamente interpretá-la? Haveria razões para isso, pois ninguém desconhece a complexidade. A melhor explicação, entretanto, é a incúria, em ofensa ostensiva ao princípio constitucional da eficiência. Outra pérola de insensatez é a tardia cobrança, pelos Estados, do imposto sobre doações em espécie. Até então, apenas o Estado de São Paulo fazia essa cobrança. Essas operações são isentas de Imposto de Renda. Desse modo, os contribuintes informavam as doações efetivadas na declaração anual, na convicção de que não haveria ônus tributário. De repente, à sorrelfa, a Receita Federal decidiu transferir essas informações para os Fiscos estaduais, que passaram a fazer lançamentos retroativos aos últimos cinco anos, acompanhados de juros e multas. Antes disso, ressalvado o Estado de São Paulo, esse imposto jamais fora cobrado. Trata-se de mais um episódio de deslealdade tributária. Em decorrência dessa insensatez, o contribuinte será induzido a buscar formas lícitas de evitar o pagamento do imposto, a exemplo da conversão da doação em empréstimo. Sendo irrisória a participação do imposto sobre doações em espécie nas receitas estaduais, o que se pretende, afinal, com esse lançamento? Espero que, na resposta, não esteja incluída a ideia de um curioso programa de deseducação tributária patrocinado pelo Fisco, estimulando o planejamento tributário. Essa hipótese de incidência deveria, tão somente, ser extinta.

Por Everardo Maciel
Atualização:

* Everardo Maciel é consultor tributário e foi secretário da Receita Federal (1995/2002).

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