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A pedra e o caminho

A crise política e econômica de dimensões bíblicas em que o País está mergulhado obscureceu o debate sobre a reforma do sistema tributário, cruel vilão da competitividade da economia brasileira. Os indicadores internacionais nos envergonham, desnudando um sistema tributário tosco, injusto e caro. A última pesquisa Doing Business, do Banco Mundial, coloca o Brasil na 178.ª posição entre os 189 países pesquisados, no quesito simplicidade tributária. As empresas brasileiras gastam, em média, 2.600 horas/ano para o cumprimento da burocracia imposta pelo Fisco. Destas, a exigida pela administração do ICMS responde por mais de metade do suplício (1.374 horas/ano).

Por Clóvis Panzarini
Atualização:

Esse calvário evoca a obra Memorial do Convento, de José Saramago, que narra a saga, no século 18, de centenas de trabalhadores e 200 juntas de bois para transportar descomunal pedra de mármore de 31 toneladas a ser usada na edificação do Convento de Mafra, promessa que fizera o rei d. João V para que a esposa lhe desse herdeiro e sucessor. O transporte da pedra vai deixando mortos pelo caminho – homens e bois. “Se Deus houvesse piedade dos homens, teria feito um mundo rasinho como a palma da mão, levariam as pedras menos tempo para chegar”, escreve Saramago.

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O contribuinte brasileiro também carrega metafórica pedra, equivalente a 36% do Produto Interno Bruto (PIB), com arestas tão cortantes, formas tão bizarras e por caminhos tão tortuosos quanto aquela pedra e aquele caminho. Mais dolorosos do que o peso são os caminhos, nada rasinhos, cada vez mais inclementes, pelos quais a pedra tem de passar, deixando, igualmente, rastro de mortes pela estrada: das pessoas jurídicas, por encerramento de atividade, falência, recuperação judicial; e das pessoas físicas, por desemprego e todo o sofrimento dele decorrente. Pior: a pedra é insuficiente para construir o convento de gastos de 46% do PIB. E os bois e os homens não aguentam mais peso no lombo nem as agruras da trilha fiscal.

É preciso diminuir o tamanho do convento, mas isso ofende a religiosidade dos fanáticos “desenvolvimentistas”. Conventos, acreditam, geram pedras e prosperidade. E os construtores de conventos aumentam despudoradamente o peso da pedra para evitar a paralisia completa da obra. Aumento do IRPF sobre ganho de capital, do IPI, dos impostos estaduais – quem sabe, nova CPMF – vai somando quilos à colossal pedra tributária. E a trilha que ela percorre fica cada vez mais íngreme.

Na mais recente pajelança, mudou-se a regra de partilha do ICMS incidente nas operações interestaduais com destino a não contribuintes: a insurgência dos Estados consumidores contra a regra constitucional que destinava, naquelas operações, a totalidade da receita ao Estado remetente resultou em Emenda Constitucional que agora lhes atribui parte da receita. Assim, o contribuinte remetente passa a ser responsável, também, pelo pagamento de quinhão do ICMS ao Estado destinatário.

Essa regra insana inviabiliza o pequeno comerciante nas vendas online, uma vez que não suporta o custo burocrático para ser contribuinte de ICMS de todos os Estados para os quais remete mercadorias, ter de acompanhar as respectivas legislações e emitir um documento fiscal para cada operação. E quando a mercadoria por ele adquirida estiver sujeita ao regime de substituição tributária (e não são poucas), no qual é exigido o pagamento antecipado da totalidade do ICMS, terá de recolher, bis in idem, o diferencial de alíquota ao Estado destinatário e, depois, tentar recuperar no Estado remetente esse quinhão que já lhe fora cobrado antecipadamente.

Outra insanidade que desponta no horizonte tributário é o populista projeto de ampliação do limite de faturamento anual dos contribuintes optantes pelo regime Simples, dos atuais R$ 3,6 milhões/ano para R$ 14,4 milhões/ano. Além de impor pesada perda de arrecadação aos entes federados, piora o sistema e amplifica o já existente desequilíbrio concorrencial entre os contribuintes Simples e os demais, que têm carga tributária significativamente maior nas mesmas operações.

“A boiada não argumenta nem se lastima, faz que puxa mas não puxa”, diz Saramago. E o País para. Pior, retrocede.

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