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''''A questão hoje é saber se pegamos uma gripe forte ou um resfriado''''

Por Rui Nogueira , Beatriz Abreu e Gustavo Freire
Atualização:

A medida do tamanho da crise financeira em curso está nos Estados Unidos, no que vier a acontecer com as perdas do mercado imobiliário americano e em quanto isso pode gerar de queda na renda e no consumo. É cedo para descartar por completo uma crise bancária, mas como nenhum país tem imunidade diante de crises globais, o melhor, no Brasil, é perseverar e fazer o que, genericamente, pode ser resumido assim: atender menos aos interesses específicos de setores que reclamam de câmbio e juros e ficar com o interesse geral do País. O diagnóstico e a receita para encarar a crise são do presidente do Banco Central, Henrique Meirelles. Em entrevista concedida na sexta-feira, ele praticamente festejou a recente medida que reduziu a exposição cambial dos bancos brasileiros. A seguir, os principais trechos da entrevista: Algum paralelo das crises anteriores com a que estamos vivendo? A diferença mais importante é com a crise do Japão, no final da década de 80 e começo da década de 90. E, numa escala menor, a crise dos EUA de 1990 e 1991. Nesses períodos, os mercados financeiros estavam muito concentrados nos bancos comerciais. Isto é, a atividade de intermediação financeira, ou seja, a transferência de recursos dos poupadores para a atividade produtiva por meio de investimento e consumo estava muito concentrada nos bancos. As mudanças, de lá para cá, deram que perfil novo ao mercado? Nos últimos anos, houve uma expansão enorme da desintermediação. Um número cada vez maior de risco foi colocado diretamente nos investidores. Por meio da compra direta de títulos, através dos fundos de investimento, dos hedge funds, dos fundos de pensão e mesmo através de companhias de seguro. Criaram-se, por outro lado, instrumentos diversos de alocação de risco através do mercado de derivativos, instrumento muito sofisticado. O que há de positivo e negativo nessa perigosa diversificação sofisticada? De positivo, uma melhor distribuição de riscos de ganhos, quando existentes, e de perdas, também, se existentes. O possível lado negativo é que a extrema sofisticação e diversidade de alguns desses instrumentos poderiam levar a efeitos inesperados. Os bancos centrais reagiram ao "inesperado", injetaram liquidez, e a sexta-feira passada foi mais calma. Funcionou? É importante entender o que os bancos centrais do mundo estão fazendo hoje. A idéia é que não compete aos governos e aos bancos centrais tentar influenciar preços de ativos, sejam ativos financeiros, sejam outros tipos de ativos. Isto compete aos mercados. O Brasil, triunfalismos à parte, está em que situação diante da crise? Em primeiro lugar, o BC hoje tem um compromisso inequívoco com a estabilidade monetária e com o bom funcionamento dos mercados, através do câmbio flutuante. A estabilidade monetária aumenta o grau da previsibilidade da economia e isso melhora as condições para a expansão do investimento e do crédito. A inflação mais baixa aumenta o poder de compra da população e, portanto, a renda. Isso propicia condições para uma maior expansão da demanda doméstica, o que nos permite crescer menos dependentes da situação da economia internacional. Que exemplos "inequívocos" o sr. dá desse compromisso com a estabilidade monetária, que ajudou a encarar a crise atual? O BC tem feito uma política consistente de acumulação de reservas, retirando, ao mesmo tempo, endividamento doméstico indexado ao câmbio. Antes, as flutuações da taxa de câmbio levavam ao aumento da dívida pública, que levava ao aumento da incerteza, que, por sua vez, levava a mais depreciação da moeda. Hoje, o governo federal é credor líquido em dólar, o que significa que no momento em que há uma depreciação do real a dívida pública não aumenta, ela diminui em reais. E, em junho passado, tomamos uma das medidas mais importantes, que foi exatamente uma medida prudencial na área de câmbio, que visava alocar mais capital à exposição cambial, de maneira que levasse os bancos a diminuir o risco cambial. Já achávamos, naquele momento, que o mercado estava muito unidirecional, apostando numa queda do dólar. Já dá para citar alguma lição a tirar da crise? Uma coisa que o Brasil adotou, talvez como resultado das nossas turbulências no passado, aparece como algo interessante agora. Acho que é um caminho que outros países podem seguir: no Brasil se faz a divulgação diária das cotas dos fundos de investimento. Em outros países não é assim. Em alguns países, só agora é que se vai publicar o resultado dos fundos e, conseqüência, o valor das cotas do mês passado. Isso gera uma incerteza maior. As autoridades regulatórias podem caminhar no sentido de dar maior transparência à indústria de fundos. Uma crise que trave o sistema bancário está descartada? Neste momento (início da tarde de sexta-feira passada) não posso responder. É um pouco cedo para isso. O BC se considera fortalecido diante da crise por ter insistido em trabalhar sem a pressão do "curto prazismo" tipicamente brasileiro? Temos dito, com toda a clareza, desde que se iniciou a política de acumulação de reservas e de diminuição do passivo cambial, no começo de 2004, que o BC não tem meta de câmbio. Portanto, o banco não tenta influenciar a tendência da taxa de câmbio. O BC foi bem sucedido no objetivo de acumulação de reservas. Quando nós anunciamos a medida prudencial, meses atrás, visando diminuir a exposição cambial do sistema financeiro brasileiro, isso foi entendido por muitos como uma medida para influenciar a taxa de câmbio. Ontem, a reclamação era dos órfãos do câmbio. Agora, os importadores já estão reclamando da crise, porque o dólar repicou. O Banco Central tem sido absolutamente inflexível na política da defesa do interesse geral, e assim continuará. Não temos nenhuma medida para atender interesses específicos, o que significa, por exemplo, tentar controlar preços específicos de ativos, dar taxa de câmbio que beneficie um setor e prejudique outro. A experiência mostra que é esse o caminho. No momento em que parcela importante de formadores de opinião sai em defesa aguerrida de interesses específicos, sem muita visão do interesse geral, então, a cada medida desse tipo, gera-se uma discussão muito forte sobre quem ganha e quem perde. O câmbio sobe? Vem a pergunta: quem ganha e quem perde? Os juros sobem? Quem ganha e quem perde? O importante é ter os melhores câmbio e juros para todos. É perniciosa essa contraposição entre indústria e finanças? Todos os setores devem funcionar a contento. Mas não há dúvida de que existe um pouco essa tendência no Brasil, de se ter uma visão de soma zero. Ou seja, o benefício de um setor significa a perda de outro. O BC está sendo testado? Os mercados brasileiros têm funcionado com bastante normalidade. O que está mais em xeque, sendo testado na economia mundial, é menos o regime de metas de inflação ou o câmbio flutuante, e mais esse fenômeno da securitização, da desintermediação financeira e dos mercados de derivativos. Todo esse arcabouço de intermediação de risco é que está em teste. A economia real pode ser afetada pela crise? Acho que ainda é um pouco cedo, um pouco prematuro para que nós possamos chegar a uma conclusão, na medida em que tudo vai depender de até que ponto os mercados, de fato, continuem a funcionar normalmente. E de que não haja crises de crédito importantes que possam paralisar determinados setores do mercado de crédito, principalmente nos Estados Unidos. A medida do tamanho desta crise está nos Estados Unidos. É isso? A dimensão das perdas do mercado imobiliário americano pode gerar um efeito na economia real por outras razões que não são relacionadas à desintermediação. Aí, é um fenômeno clássico: as perdas no mercado imobiliário geram um efeito de perda de riqueza na população com uma queda conseqüente do consumo, da demanda e, em conseqüência, queda da atividade econômica. O sr. acha alta ou baixa a probabilidade de uma recessão da economia dos Estados Unidos? Existe, sim, uma certa probabilidade, mas, claramente, a probabilidade maior é que de fato não haja uma recessão, e sim uma diminuição do ritmo de crescimento. Mas nada pode ser descartado neste momento. Ainda é cedo para fazer julgamentos definitivos. E os riscos para a economia real do Brasil? O Brasil, assim como os demais países, não ficaria imune a uma recessão muito grande da economia americana. Hoje, estamos aqui com a discussão sobre se pegamos uma gripe forte ou uma gripe leve, ou, quem sabe, até podemos escapar com um pequeno resfriado. De qualquer maneira, existem riscos, sim. Devemos perseverar nas medidas de estabilização da economia brasileira. Está havendo uma queda nos preços das commodities. Isso pode nos afetar? Não há dúvidas de que essa reprecificação dos ativos, dependendo do nível de atividade, pode vir a afetar os preços das commodities. Precisamos saber qual é a dimensão desse processo. Se a China, Índia e Europa continuarem com essa dinâmica, e os Estados Unidos registrarem uma diminuição da atividade, mas não uma recessão, a médio prazo isso gerará um determinado nível de precificação das commodities. Uma recessão de escala global seria uma outra reprecificação.

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