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A superpotência que não larga o osso

EUA mantêm hegemonia econômica mesmo com fatia menor do PIB mundial e com sistema político preocupado com próprio umbigo

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Por Redação
Atualização:
O Federal Reserve é o senhor do sistema, muito pela condução da crise em 2007-2008; quando muda de direção, trilhões de dólares no mundo inteiro mudam com ele Foto: KAREN BLEIER/AFP
Os EUA, de Barack Obama, detêm 23% do PIB global Foto: Andrew Harnik/AP

É mais uma vez sob seu comando que está se iniciando uma nova era, desta vez baseada na computação em nuvem, no comércio eletrônico, nas mídias sociais e na economia compartilhada. Seus produtos se tornam globais com maior rapidez e mexem mais profundamente com a cabeça e os empregos das pessoas do que qualquer outra coisa que o Vale do Silício já inventou, afetando a todos, dos taxistas aos mulherengos e déspotas.A maior parte dos negócios do Facebook e do Google é feita no exterior; e a fatia está aumentando. Quando a Microsoft estava no auge, no ano 2000, menos de um terço de suas vendas acontecia fora dos Estados Unidos. Agora as empresas americanas abrigam 61% dos usuários de mídias sociais do mundo, executam 91% das buscas na internet e são responsáveis pelos sistemas operacionais que abastecem 99% de todos os smartphones em operação. As empresas de internet chinesas, incluindo a de Jack Ma, são a um só tempo protegidas e obstruídas pela “Grande Firewall” da China.Aumentou também a primazia dos EUA sobre as finanças globais e o sistema monetário mundial. A fatia de mercado dos bancos de investimentos de Wall Street chegou a 50%, em virtude da retração experimentada por seus correlatos europeus e da falta de progresso dos jovens concorrentes asiáticos. Os fundos de investimentos americanos concentram 55% dos ativos aplicados, frente a 44% há uma década, refletindo a expansão do segmento de shadow banking (intermediação de crédito envolvendo atividades e instituições que não pertencem ao sistema bancário tradicional) e de novos veículos de investimento, como os fundos de índices. Os fluxos globais de capital, maiores do que em qualquer outro momento da história, acompanham o vaivém do VIX, uma medida de volatilidade das bolsas de valores americanas.Poder por negligênciaUma das peculiaridades da globalização é que, embora a participação dos EUA no comércio internacional tenha diminuído, o mesmo não aconteceu com sua influência monetária. O Fed é, um pouco a contragosto, o senhor do sistema, tendo cimentado sua posição com as políticas adotadas para enfrentar a crise financeira de 2007-2008. Quando o Fed muda de direção, trilhões de dólares no mundo inteiro mudam com ele.O dólar, largamente visto como um pilar do soft power americano, fortaleceu-se. A demanda externa pela moeda garante baixo custo de endividamento ao governo americano, e o país ganha senhoriagem com a emissão de cédulas bancárias que circulam no mundo inteiro. As empresas americanas correm menos riscos em suas transações externas, e os cidadãos do país podem gastar mais do que poupam com maior impunidade. Mesmo quando uma crise global se inicia nos Estados Unidos, é para lá que os investidores correm em buscam de proteção.Desde os atentados de 11 de setembro de 2001, os Estados Unidos são enfáticos em sua disposição de manter o controle sobre o sistema de pagamentos em dólar que está no cerne do comércio e das finanças internacionais. Países, empresas ou pessoas hostis podem ser excluídos do sistema, como já aconteceu com o Irã, com magnatas birmaneses, políticos russos e com os cartolas da Fifa. A possibilidade de aplicar essa punição ampliou o alcance da autoridade extraterritorial dos americanos.As finanças e a tecnologia já são um campo de batalha em que a soberania está em jogo, como mostra a ação do órgão antitruste europeu contra o Google. De modo que a pretensão que os Estados Unidos têm de manter o controle sobre o sistema nervoso central da economia mundial, muito embora o país já não seja a principal potência econômica, é a expressão mais acabada de seu excepcionalismo. Para serem bem-sucedidos, os americanos terão de ser extremamente hábeis. O país terá de agir em prol do interesse coletivo - e terá de garantir que sua ação seja vista dessa maneira pelos demais países.O sistema político americano produziu lideranças formidáveis no passado. Atualmente, porém, a safra não é das melhores. A crise financeira global mostrou que os Estados Unidos sempre acabam fazendo a coisa certa, mas só depois de esgotar todas as alternativas. O Fed garantiu liquidez ao mundo, e, com uma arma apontada contra a cabeça, o Congresso americano forneceu os recursos necessários ao socorro das instituições financeiras americanas. De lá para cá, porém, o sistema político do país flerta com o default da dívida soberana, recusa-se a reformar ou a financiar o FMI, obstrui os esforços que os chineses vêm fazendo para criar suas próprias instituições internacionais, impõe multas drásticas a bancos estrangeiros e exclui um número crescente de estrangeiros do sistema do dólar.A ideia de que o sistema político americano não se sente obrigado a cumprir com o que estrangeiros movidos por interesses nada altruístas chamam de suas responsabilidades econômicas globais não é nova. Quando informado sobre um ataque especulativo contra a moeda italiana, em 1972, Richard Nixon disse: “Estou me lixando para a lira”. Mas a atual indiferença do país talvez seja mais do que um período temporário de apatia. A classe média americana está insatisfeita com a globalização e encontra-se profundamente polarizada politicamente.Se os Estados Unidos não atenderem às expectativas, o que isso significará para o resto do mundo? Por ora, é fácil para as autoridades e os políticos americanos adotarem uma atitude acomodada: a aura de competência dos chineses foi tisnada pelas dificuldades econômicas que o país asiático vem enfrentando, e no atual contexto de baixo crescimento mundial, a economia dos EUA é a que tem tido melhor desempenho. Mas é importante ter clareza sobre as escolhas de longo prazo. Os americanos não podem achar que dominarão sem esforço as finanças e a tecnologia globais, mesmo com sua participação no comércio e no PIB mundiais caindo e seu sistema político voltado cada vez mais para os desentendimentos internos.A trajetória atual do país não é nada animadora. O sistema monetário mundial tende a estar cada vez mais sujeito a crises, e os Estados Unidos não terão como se proteger dos custos potencialmente envolvidos. Outros países, liderados pela China, criarão suas próprias defesas, balcanizando as normas que regem os setores de tecnologia, comércio internacional e finanças. O desafio é criar uma arquitetura que possibilite aos EUA manter sua condição de superpotência que não larga facilmente do osso da economia mundial.

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