Ala liberal perde espaço e sobe o tom contra Bolsonaro

Um dos pilares da frente que elegeu o presidente em 2018, o grupo sofreu perdas relevantes no governo e ampliou as críticas ao presidente com intervenção na Petrobrás e outras medidas populistas

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Por José Fucs
9 min de leitura

Nesta semana, em linha com o seu estilo “morde e assopra”, o presidente Jair Bolsonaro resolveu fazer um afago no ministro da Economia, Paulo Guedes, depois de criticar a política de preços da Petrobrás e anunciar a demissão do comandante da empresa, Roberto Castello Branco.

Diante dos rumores de que Guedes poderia deixar o cargo após a dispensa de Castello Branco, um dos expoentes do grupo de liberais que ele levou para o governo, Bolsonaro resolveu tirar da gaveta as privatizações da Eletrobrás, a estatal de geração e transmissão de energia, e dos Correios, defendidas desde sempre pelo ministro.

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Bolsonaro pediu a saída de Roberto Castello Branco, presidente da Petrobrás Foto: Wilton Junior/Estadão

Bolsonaro também procurou mostrar que a percepção de que não está comprometido com a agenda liberal de Guedes – cada vez mais acentuada até entre seus apoiadores – é infundada. “Nossa agenda continua a todo o vapor”, afirmou, ao entregar o projeto de privatização da Eletrobrás ao Congresso, na terça-feira, 23. “Nós queremos, sim, enxugar o Estado, para que a economia possa dar a resposta que a sociedade precisa.”

Guedes, aparentemente, “agasalhou” mais esse revés e deverá continuar por ora a conferir ao presidente o verniz liberal que foi essencial para a sua eleição, em 2018, com a esperança de que ainda receberá o aval do chefe para dar tração às suas propostas. Guedes costuma dizer a seus auxiliares que é “duro na queda” – e, considerando que permaneceu no cargo até agora, apesar das inúmeras “bolas nas costas” que levou de Bolsonaro nos 26 meses de governo – é difícil discordar dele neste aspecto, independentemente do que se pense a seu respeito. Em sua posição, outros, provavelmente, já teriam abandonado o barco por muito menos.

Legado econômico

Com a aproximação das eleições de 2022 e a provável candidatura de Bolsonaro à reeleição, a implementação de medidas que são fundamentais para o País, mas mexem com interesses de todos os tipos, como as privatizações, as reformas, a austeridade fiscal, a abertura econômica e o fim de privilégios setoriais e de categorias profissionais, deverá se tornar cada vez mais difícil. O ministro, porém, parece encarar a sua passagem pelo governo como uma missão e se mostra disposto a enfrentar as adversidades para tentar deixar um legado na economia do qual possa se orgulhar.

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“O ministro Paulo Guedes é resiliente, obstinado e determinado, mas não percebeu que foi vencido”, disse recentemente o empresário Salim Mattar, ex-secretário especial de Desestatização, à repórter Cleide Silva, do Estadão. “O presidente está de olho na reeleição e não quer fazer nada que possa prejudicar a sua imagem.”

Salim Mattar, ex-secretário de Desestatização do Ministério da Economia Foto: Gabriela Biló/Estadão

Batizado de Posto Ipiranga por Bolsonaro durante a campanha eleitoral, o superministro que reuniu quatro pastas sob seu comando – Fazenda, Planejamento, Desenvolvimento e Trabalho, além da Previdência – está se tornando uma voz cada vez mais solitária no governo. Aos poucos, mas de forma consistente, a ala liberal que ele representa e que foi um dos pilares da frente política que elegeu Bolsonaro, está vendo seu espaço minguar a olho nu. Da equipe de liberais puros-sangues levados por Guedes para Brasília, restam apenas Carlos da Costa, secretário especial de Produtividade, Emprego e Competitividade do Ministério da Economia, e Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central.

Batida em retirada 

Com a queda de Castello Branco, que faz parte da velha guarda da Universidade de Chicago, o templo do liberalismo global no qual Guedes também se formou, já são cinco os representantes do “núcleo duro” de liberais do governo que ficaram pelo caminho. Isso sem contar os nomes que bateram em retirada, mas tinham um perfil mais técnico e eram profissionais de carreira no setor público, como o ex-secretário do Tesouro Mansueto Almeida, ou não faziam parte do círculo mais próximo do ministro.

Além do próprio Castello Branco e de Salim Mattar, que deixou o cargo por não ter conseguido realizar as privatizações em série que pretendia, a lista inclui o ex-secretário especial de Desburocratização, Paulo Uebel, que saiu contrariado com a resistência do presidente em promover uma ampla reforma administrativa, que englobasse os atuais servidores. Inclui ainda o ex-presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes, também ex-aluno da Escola de Chicago, que renunciou ao posto dizendo que “é muito difícil para um grupo de liberais trabalhar no ambiente de Brasília”.

Economista e diplomata Marcos Troyjo foi secretário de Comércio Exterior até julho de 2020 Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

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Outro integrante da ala liberal que se desligou do governo foi o ex-secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais, Marcos Troyjo, que tinha a missão de tocar a abertura econômica desejada por Guedes. Mas, como a abertura não saiu do papel, em razão da influência exercida por representantes do setor industrial junto a Bolsonaro, Troyjo acabou indicado para ocupar a presidência do Conselho de Governadores do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, em inglês), mais conhecido como Banco do Brics (a organização formada por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).

Rompimento com liberais

Se o presidente do Banco do Brasil, André Brandão, deixar mesmo o posto, como tudo indica, o grupo vai ganhar mais um membro. Brandão colocou o cargo à disposição na sexta-feira, 25, depois de ser ameaçado de demissão por Bolsonaro, por ter anunciado um programa de redução de custos que previa o fechamento de agências e um plano de demissão voluntária para eliminar 5 mil vagas na instituição.  O episódio, aliado à intervenção na Petrobrás, reforçou o temor de que a guinada de Bolsonaro possa  levar  a um rompimento definitivo com os liberais, culminando com a saída de Guedes do governo.

Rubem Novaes, predecessor de André Brandão no comando do Banco do Brasil Foto: Amanda Perobelli/Reuters

Em vez do discurso adotado na campanha, o presidente está resgatando as velhas posturas corporativistas e nacional-desenvolvimentistas, de viés estatizante, que marcaram a sua trajetória política, sem qualquer identificação com as bandeiras defendidas pelos liberais no País.

'Função social'

"O petróleo é nosso ou de um pequeno grupo no Brasil?”, afirmou Bolsonaro, em referência à frase do ex-presidente Getúlio Vargas adotada depois na campanha nacionalista que levou à criação da Petrobrás, nos anos 1950, ao esbravejar contra os seguidos aumentos nos preços dos combustíveis.  “Uma estatal, seja ela qual for, tem de ter visão social”, acrescentou, incorporando um discurso que é o oposto do adotado pela turma de Guedes.

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Pela ótica liberal, a melhor forma de as estatais cumprirem a sua “função social”, é por meio do aumento de eficiência e de produtividade, para gerar mais lucros e mais dividendos para o governo poder aplicar o dinheiro em saúde, educação e segurança. "Os combustíveis são commodities, como o açúcar, o café, o trigo. São commodities cotadas em dólar e seus preços são formados pela oferta e demanda internacional", afirmou Castello Branco, em resposta às críticas de Bolsonaro, durante a apresentação do balanço da Petrobrás no quarto trimestre de 2020, que apontou lucro recorde de R$ 59,9 bilhões. “O preço não é caro nem barato, o preço é preço de mercado. Se o Brasil quer ser uma economia de mercado tem de ter preços de mercado. Não atenderemos aos melhores interesses da sociedade subsidiando os preços dos combustíveis.” 

Ironicamente, os aplausos à intervenção de Bolsonaro na Petrobrás vieram do PT e de outras organizações de esquerda, defensores tradicionais do “papel social” das estatais e principais adversários do presidente. “Não se rendam ao mercado financeiro e aos interesses especulativos”, disse o ex-ministro e ex-senador petista Aloizio Mercadante. “Parem a privatização das refinarias, defendam uma Petrobrás forte e tragam uma política de preços justa para o povo brasileiro, os caminhoneiros e os motoristas de aplicativos.”

'Práticas do PT'

Ao mesmo tempo, representantes da ala liberal, que até ontem ou anteontem reforçavam as fileiras bolsonaristas nas redes sociais, saíram em defesa de Castello Branco. Até o ex-secretário Paulo Uebel, que era um dos homens de confiança de Guedes, decidiu se manifestar.

“Roberto Castello Branco, presidente da Petrobras, será substituído por estar fazendo o trabalho certo: blindar uma empresa estatal contra o uso político, contra o populismo. As empresas estatais não devem ser usadas para gerar votos. Isso viola os princípios da administração pública e contraria as boas práticas de governança”, afirmou no Twitter.  Depois, em entrevista ao Estadão, Uebel foi além. “A mudança na Petrobrás aproxima Bolsonaro das práticas do PT”, disse. “Isso é o oposto do que o eleitor de Bolsonaro gostaria de ver.”

Ex-secretário especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia, Paulo Uebel Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Um caso relatado pelo economista Gustavo Franco em sua coluna de 27 de dezembro no jornal, ocorrido durante uma visita de Bolsonaro à Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo), revela, de forma emblemática, o desapreço que ele confere às ideias e propostas da ala liberal do governo, muitas vezes camuflado por um discurso que pode até “levantar a arquibancada”, mas tem pouco a ver com a realidade.

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Segundo os relatos de testemunhas ouvidas por Franco, Bolsonaro fez a seguinte afirmação a seus auxiliares, ao chegar ao palanque armado no local para recebê-lo: “Vocês viram meu projeto econômico liberal por aí? Acho que deixei cair...Não consigo encontrar, é uma coisa pequena”. Em seguida, acrescentou, em tom de chacota: “Vocês sabem, pode estar em qualquer parte, as reformas liberais estavam todas no mesmo chaveiro...É uma coisinha pequena, mas importante para mim, deve estar jogada no chão, vamos procurar por favor...”.

A troça de Bolsonaro fala por si mesma, mas, para não deixar margem a dúvida, Franco sintetizou o seu real significado no artigo: “A visita-comício na Ceagesp serviu como um marco para assinalar o rompimento público entre o projeto político de Jair Bolsonaro com sua política econômica, declaradamente de livre mercado, uma junção tensa, às vezes descrita como um casamento arranjado”.

Apesar das divergências com Bolsonaro, boa parte da ala liberal que o apoiou em 2018 vinha relativizando os seus pecados até agora. Mas, diante da sucessão de transgressões às crenças do grupo nos últimos tempos, o divórcio dos liberais com Bolsonaro talvez esteja mais próximo do que se poderia imaginar algum tempo atrás e deverá afetar a correlação de forças nas eleições de 2022 e reforçar a busca por uma alternativa política para a disputa.

Polarização política

Salim Mattar, por exemplo, que chegou a ser sondado como candidato do Novo à Presidência em 2018, tem confidenciado a interlocutores do partido que estaria disposto a participar do pleito se houver um posicionamento independente da legenda, que fuja da polarização política entre Bolsonaro e o PT.

“Hoje, não tenho mais confiança na fidelidade de Bolsonaro à agenda liberal”, diz Lucas Berlanza, presidente do Instituto Liberal, uma organização voltada para a difusão das ideias liberais no País. “Imaginava que, para mim, o ponto máximo de decepção com Bolsonaro seria a saída do Paulo Guedes, mas isso não foi necessário para eu chegar lá. Muitos liberais se decepcionarem com o presidente  sem a necessidade de o ministro sair.”

Como líder dos liberais no governo, Paulo Guedes, provavelmente, vai “apagar a luz”. A questão, agora, pelo que se pode observar, não é tanto saber “se” ele vai deixar o governo, mas “quando” o fará. Se a guinada nacional-desenvolvimentista e intervencionista de Bolsonaro se confirmar, o risco de Guedes esticar a sua permanência no cargo e continuar a “engolir sapos” do presidente é ele estar à frente de um exército de um homem só – ele próprio.