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Além das palavras

Por Marcelo de Paiva Abreu
Atualização:

As comemorações do segundo centenário da chegada da família real portuguesa ao Brasil inauguraram longa seqüência de celebração de efemérides: tratado de amizade, comércio e navegação de 1810, criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves em 1815 e convenção e tratado de 1815 sobre o tráfico de escravos. É natural que tais comemorações não se limitem à reavaliação histórica e ampliem a sua agenda para considerar lições que o passado possa prover para o futuro das relações luso-brasileiras. Mas é importante que não sejam alimentadas ilusões quanto ao assunto. Nestes dois séculos, os vínculos que unem Brasil e Portugal estão relacionados à identidade lingüística e cultural, potencializada pela imigração portuguesa até meados do século passado. Ferreira de Castro em A Selva e Miguel Torga em A Criação do Mundo, como cronistas do Brasil, fazem lembrar quão entrelaçadas são as heranças culturais das antigas metrópole e colônia. No meio século a partir de 1880 entrou no Brasil quase 1,2 milhão de portugueses. Ainda na década de 1950, quase 24 mil portugueses ao ano e só depois os destinos europeus prevaleceram. As relações econômicas entre Brasil e Portugal minguaram rapidamente: 20 anos depois da independência, a participação de Portugal nas exportações e importações brasileiras andava pela casa dos 8%, em 1900 havia caído para cerca de 1% nas exportações e ainda 7% nas importações. Hoje as participações são insignificantes: 1,1% e 0,3%, respectivamente. Certos temas, tais como as remessas de imigrantes e a dívida externa brasileira, mantiveram sua relevância, principalmente por conta da diáspora portuguesa e dos retornados. No decorrer do século 20, os eventos nos dois países não contribuíram para que fosse relançada uma reaproximação substantiva entre eles: Estados Novos, colonialismo português e evolução da política externa brasileira, democratização em Portugal e fim do regime militar no Brasil, dificuldades bilaterais na esteira da entrada de Portugal na Comunidade Econômica Européia e longa crise econômica no Brasil. Passadas as tormentas, esse é um momento importante para as relações entre os dois países. De um lado, o Brasil, consolidada a estabilização, retomou uma trajetória de crescimento econômico moderado e vê aumentada a sua credibilidade internacional. De outro, Portugal enfrenta crise de identidade quanto ao seu papel na Europa, quanto à sua inserção ibérica e ao papel que, de fato, pode ter o mundo lusófono. Entretanto, existem claras oportunidades para uma maior aproximação entre os dois países. Quando comparadas a outras ex-metrópoles coloniais, Portugal e Grã-Bretanha são, de longe, as que se caracterizam por razões mais altas entre o atual produto interno bruto (PIB) da metrópole e o PIB das antigas colônias habitadas preponderantemente por emigrantes da metrópole. Isso reflete o tamanho das economias do Brasil e dos EUA em relação a Portugal e à Grã-Bretanha e indica que é provável que as oportunidades para Portugal no Brasil sejam mais significativas do que as oportunidades para o Brasil na Europa por intermédio de Portugal. Para a entrada de produtos brasileiros na Europa, Portugal enfrenta a concorrência dos grandes protagonistas europeus. A agenda brasileira na Europa é espinhosa e não é provável que Portugal possa, ou mesmo queira, incorrer nos custos de apoiar a agenda brasileira. O leque de temas é amplo: protecionismo agrícola europeu e suas repercussões nas negociações multilaterais na Organização Mundial do Comércio (OMC), barreiras sanitárias e fitossanitárias na Europa, diáspora brasileira e dificuldades suscitadas no espaço Schengen europeu, especialmente na Espanha, e fora do espaço Schengen, especialmente no Reino Unido. Na obtenção do "investment grade" pelo Brasil, a possível influência portuguesa é, também, certamente modesta. O volume de investimentos brasileiros em Portugal - estoque de US$ 1,2 bilhão - não é compatível com a idéia de que Portugal possa ser importante como trampolim para o acesso de produtos brasileiros ao mercado europeu. A grande oportunidade para que se dê substância às relações luso-brasileiras está no aumento dos investimentos portugueses no Brasil. Em 1995, o estoque era de apenas US$ 106 milhões, em 2006, era de US$ 8,6 bilhões, em torno de 4% do total. Há investimentos portugueses na indústria química, em minerais não-metálicos, em turismo e em serviços financeiros. Mas o grosso está concentrado em serviços de eletricidade e de telecomunicações. Os capitais portugueses aproveitaram-se da janela de oportunidade decorrente da privatização no Brasil na década passada. Criou-se interesse português na gestão econômica prudente no Brasil, para assegurar condições favoráveis para a operação de empresas provedoras de serviços públicos. Esse interesse é convergente com as pressões do setor privado português para que as finanças públicas em Portugal continuem a ser postas em ordem. Criou-se, igualmente, interesse português na continuidade do processo de privatizações no Brasil, assunto que tem sido tratado com peculiar morosidade e ineficácia desde 2003. Um Brasil com melhor desempenho econômico é parceiro essencial para que Portugal reencontre a sua posição na Europa. A ampliação do escopo para a convergência de interesses entre os dois países requer, necessariamente, grande aumento do intercâmbio entre os dois países em todas as esferas. O desafio é dar substância econômica à sintonia lingüística e cultural. Ir além das palavras. *Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

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