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Alta de alimentos ameaça derrubar governos na África

Crise estimula protestos e a luta contra a fome se torna a principal bandeira de oposições e de grupos rebeldes

Por Jamil Chade
Atualização:

Monróvia - As frágeis democracias da África e os ditadores estão preocupados. A crise nos preços dos alimentos não parece ter data para acabar. As populações estão cada vez mais frustradas e os partidos de oposição e grupos rebeldes ensaiam usar a fome para derrubar governos. Na Libéria, autoridades não tem como não lembrar do assassinato violento, em 1980, do então presidente William Tolbert, morto em protesto que começou justamente por causa da alta nos preços do arroz. Em um hospital em Monróvia, capital da Libéria, médicos alertam que a situação é grave e o número de crianças malnutridas aumenta a cada dia. Segundo autoridades locais, salas de escritório do hospital são usadas para colocar pacientes. Para o Unicef, a situação é crítica em toda a região do oeste da África. Nesses países, 30% das crianças com até 5 anos estão abaixo do peso. O temor é de que a crise aumente ainda mais essa taxa e a transforme em obstáculo ao desenvolvimento. Para a ONU, a preocupação não é apenas com a situação dos mais pobres, e sim com a própria estabilidade da região. Em conversa com o Estado, o secretário-geral da ONU, Ban Ki Moon, revelou que o tema é prioridade em sua agenda e está pedindo para que as operações de paz dêem mais atenção à questão da alimentação dos mais pobres como forma de garantir certa ordem. "O impacto político da fome é real." Não por acaso, ele pediu ontem que os governos da região tomem medidas necessárias para alimentar a população "Alimentar mulheres e crianças deve ser a prioridade agora." Num mercado popular de Acra, em Gana, vendedores de arroz e outros alimentos admitem que a população está inquieta. "As pessoas reclamam muito dos preços. Se a próxima colheita não for farta, teremos problemas sérios no país", alertou Mary, vendedora de alimentos há mais de dez anos. Ela admite que teve de elevar o preço do arroz em mais de 100% em seis meses. "Se eu não elevar o preço, vou ter de pagar para vender. Obviamente os consumidores não entendem isso." Os vendedores não sabem dizer o motivo da alta, e alguns nem sequer ouviram falar do etanol. A poucos quilômetros do mercado, líderes mundiais debatiam o impacto da alta do petróleo, da expansão do etanol e dos especuladores na disputa por alimentos. "Eu só sei que os custos aumentaram. Por isso, tenho de cobrar mais", disse James Kongu, comerciante. Entre os consumidores, o resultado da alta tem sido violência em vários países. Burkina Faso, Senegal, Costa do Marfim, Mauritânia, Libéria e Camarões são apenas alguns dos que sofrem com a violência. Ativistas de direitos humanos acusam os governos de usarem a repressão para lidar com a crise. Para a União Inter-Africana para a Defesa dos Direitos Humanos, governos supostamente comprometidos em garantir a democracia voltam a usar as mesmas táticas de repressão das guerras civis, desta vez contra famintos. "Há uma regressão no campo da democracia no oeste da África", afirmou a entidade em uma nota. Recém-saída de uma guerra civil que durou 14 anos, a Libéria tem agora de lidar com nova e inesperada crise. Edifícios oficiais sem energia e sem computadores por causa dos preços e população com crescente sentimento de frustração de que a democracia não gerou os benefícios imediatos que esperavam. CULPA Governos insistem que a culpa é dos especuladores e do petróleo. Mas ativistas alertam que os protestos são contra o uso pouco claro dos recursos gerados pelo boom das commodities. A imprensa da Costa do Marfim acusa o presidente Laurent Gbagbo de levar vida de magnata. No Senegal, a polícia invadiu uma TV que insistia em mostrar protestos por alimentos e a repressão das forças do governo. A TV estatal simplesmente ignorou os protestos. Ontem, o presidente de Serra Leoa, Ernest Bai Koroma, alertou que seria fácil acusar os políticos e agradeceu o fato de que a ONU tenha culpado os países ricos e os mercados pelos problemas de alimentação. Em seu país, o preço do arroz aumentou 300% em um ano. A realidade é que a tensão aumenta a cada dia. Em Burkina Faso, pelo menos 180 pessoas foram presas desde fevereiro por protestar e a violência foi uma das piores desde o fim da guerra civil nos anos 90. Na Costa do Marfim, a ditadura do presidente Gbagbo prometeu eleições ainda este ano, mas a crise dos alimentos já faz alguns líderes pensar em adiar o processo, principalmente porque os grupos políticos estão fortemente armados. Na opinião de Moon, depois de cinco anos de guerra civil, a paz pode desaparecer diante da crise dos alimentos e seu uso político. Diante da tensão, o jornal local L''Inter publicou, há dois dias, que os meios de comunicação foram ameaçados pelo governo local se continuassem cobrindo os protestos. A TV estatal apenas divulgou imagens do presidente Gbagbo anunciando o corte de tarifas de importação para alimentos como forma de tentar reduzir os preços internos. O maior produtor de cacau do mundo tem 49% de seus 19 milhões de habitantes vivendo com menos de US$ 2 por dia. Em Camarões, protestos que começaram contra a alta no preço de alimentos se transformaram em luta contra a idéia do presidente Paul Biya de modificar a Constituição para permitir que possa se reeleger. Ele está há 25 anos no poder.

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