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Amargo regresso

Mais de 80% do pequeno crescimento da economia registrado entre 2015 e 2018 ficou na mão dos mais ricos

Por Luís Eduardo Assis
Atualização:

Há uma década, o otimismo predominava e o futuro do Brasil parecia melhor. Caminhamos muito desde então, nem sempre para a frente. Entre o ano 2000 e 2010 o PIB per capita cresceu 27%, ante 9,1% nos anos 90 e uma queda de 4% na década de 80. Estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) – Distribuição de Renda nos Anos 2010: Uma Década Perdida para Desigualdade e Pobreza, de R. Barbosa, P. Souza e S. Soares – calcula que o índice de Gini, medida usual da distribuição de renda, tenha caído 10% na primeira década deste século, indicando menor concentração. Parecíamos ter achado o caminho. Só que não. Fomos presas fáceis de uma conjuntura internacional menos favorável e, em especial, de uma longa miscelânea de asnices na política econômica.

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Analisando os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) entre 2012 e 2018, os autores do estudo identificam que o ano de 2015 foi o divisor de águas na tendência da distribuição de renda. Entre 2012 e 2015, a taxa de crescimento dos estratos de renda mais pobres ficou acima da média. Para o período entre 2015 e 2018, ao contrário, a pequena recuperação da economia beneficiou os mais ricos, de tal sorte que a renda real dos 10% mais pobres em 2018 era menor que a de 2012. A distribuição de renda ficou mais concentrada. O índice de Gini caiu de 0,541 para 0,525 no primeiro período, mas subiu para 0,545 em 2018. Mais de 80% do pequeno crescimento da economia registrado entre 2015 e 2018 ficou na mão dos mais ricos. O PIB per capita de 2020 deve ser 6% menor que o de 2010.

O auxílio emergencial teve forte impacto na pobreza e na distribuição de renda, revertendo momentaneamente a tendência de pauperização e concentração de renda. Segundo cálculos do economista Daniel Duque, da FGV, o auxílio reduziu a pobreza para o menor porcentual em 40 anos. O total de brasileiros com renda de até US$ 5,50 por dia passou de 58,8 milhões (28% da população) em maio para 43,7 milhões (ou 20,7% da população) em agosto. Reação fulminante. Em setembro, contudo, o corte da ajuda para R$ 300,00 surtiu efeito igualmente instantâneo e este segmento da população já cresceu para 46,3 milhões.

Outro estudo (Auxílio Emergencial e seu Impacto na Redução da Desigualdade e da Pobreza, de P. Monte, da UFPB) calcula que o índice de Gini, sempre ele, de junho foi de 0,48 considerando o auxílio, mas teria sido de 0,54 se não houvesse a ajuda federal. De forma análoga, a pobreza extrema (condição da população que ganha menos de US$ 1,90 por dia) castigou 3,2% dos brasileiros com o auxílio, porcentual que subiria para 14,4% sem ele. Os números são eloquentes.

Mas a mágica está no fim. O governo está intoxicado pela própria saliva e não consegue levar adiante as propostas rasas que lança aos borbotões. O mercado financeiro, esta entidade espírita, fica com siricutico todas as vezes que se cogita de alterar a norma que regula o teto dos gastos públicos. Mesmo a redução de subsídios para financiar parcialmente uma corruptela do auxílio emergencial é rejeitada. Cortar despesas por meio de uma ampla reforma administrativa está fora do radar, dada a inépcia política de um presidente que nem sequer conseguiu coletar as assinaturas necessárias para formar seu partido político.

Tudo isso sugere que a aterrissagem em 2021 não será suave. Manter o auxílio da forma como está é inviável. Sua supressão terá forte impacto na população mais pobre, já afetada pelo flagelo do desemprego e da inflação dos alimentos, que acumula 18,4% nos últimos 12 meses. A perda da popularidade do governo, no rastro das mazelas econômicas, dificultará a aprovação de reformas. 2020 tem sido o ano que vivemos em perigo. O próximo ano não promete menores emoções.ECONOMISTA, FOI DIRETOR DE POLÍTICA MONETÁRIA DO BANCO CENTRAL E PROFESSOR DE ECONOMIA DA PUC-SP E FGV-SP. E-MAIL: LUISEDUARDOASSIS@GMAIL.COM