31 de março de 2009 | 21h04
Nos encontros que mantém com autoridades do exterior, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem procurado cultivar a imagem de uma liderança democrática de esquerda. Diante dos microfones das redes internacionais de comunicação, critica acidamente os ricos e sai em defesa dos oprimidos. Foi assim, para citar dois encontros recentes, com o presidente Barack Obama, nos Estados Unidos, e com o primeiro-ministro britânico Gordon Brown, dias atrás, no Brasil. Internamente, porém, a política econômica praticada pelo ex-líder sindical não tem nada a ver com a esquerda: herdada de seu antecessor (Fernando Henrique Cardoso), ela é estritamente capitalista, de contornos liberais, conservadora.
Qual a razão desse descompasso entre discurso e prática? Na entrevista abaixo o historiador Marco Antonio Villa, professor do programa de pós-graduação em ciência política da Universidade Federal de São Carlos, analisa o comportamento presidencial, observando que a duplicidade não é causada por um motivo específico, mas por vários. Alguns ligados à própria personalidade do presidente: "Essa ambiguidade, que o leva a radicalizar o discurso, ao mesmo tempo que busca soluções conservadoras na prática, vem desde os tempos em que era líder sindical". Outra razão seria o partido ao qual está ligado, o PT, que ainda não teria feito uma crítica aprofundada do desastre que o socialismo representou para vários países. O professor também cita as ambições de Lula: "Está pensando lá na frente, em 2014, quando deve voltar a ser candidato."
Estado - Fica cada vez mais evidente a ambiguidade do discurso presidencial, que no exterior se apresenta como líder de esquerda, enquanto internamente aplica uma política econômica capitalista conservadora. Como o senhor vê isso?
Me parece que quando o presidente está lá fora ou conversando com líderes estrangeiros o que predomina é a visão de Marco Aurélio Garcia, seu assessor para assuntos internacionais. De acordo com essa visão é necessário cultivar simpatias e aproximações fortes com governos de esquerda, adotando a mesma linguagem dos líderes desses governos - hoje capitaneados por Hugo Chávez, da Venezuela. Isso não combina com a política econômica interna, que é ultra ortodoxa e responsável, precisamos reconhecer, pelo sucesso que o governo teve até o terceiro trimestre do ano passado, quando a conjuntura internacional era favorável ao Brasil.
Estado - Por que ele não aplica internamente o discurso que faz para a plateia externa?
Porque perderia a base de sustentação política, econômica e social. Outra gestão à frente do Estado exigiria outra base para o governo. Ele não pode de uma hora para outra abandonar a posição de centro-direita e dar um passo para a esquerda. Toda vez que aparece uma oportunidade para fazer isso, o governo reluta.
Estado - Na prática, esse discurso de líder não alinhado traz alguma vantagem para o País?
Nenhuma. Na prática isso não tem redundado em benefícios concretos. Em todas as ocasiões em que tentou colher frutos dessa política, o governo foi derrotado. Isso aconteceu nas reuniões da OMC, nas pretensões de fazer parte do Conselho de Segurança da ONU, no Banco Interamericano de Desenvolvimento, e, mais recentemente na Unesco - quando o Brasil tentou, sem sucesso, indicar o presidente da instituição.
Estado - O senhor falou na influência de Marco Aurélio Garcia. Mas como é que o presidente Lula se enquadra nesse figurino ambíguo?
A ambiguidade tem sido uma característica da carreira do presidente. Ela já se manifestava nos tempos de sindicalismo. Durante a grande greve de 1980, a mais longa do ABC, Lula começou a defender para as pessoas mais próximas que estava na hora de por um fim ao movimento. Ele queria um ponto final para a greve, mas não tinha coragem de falar isso publicamente. Então pediu aos colegas da diretoria do sindicato para que o fizessem. Foi um desastre: eles receberam vaias assim que tocaram no assunto. Lula então apareceu em cena e pediu um voto de confiança aos grevistas para dialogar com os empresários. Conquistou o voto e acabou fazendo uma negociação, por debaixo do pano, para acabar com a greve. Essa ambiguidade, que o leva a radicalizar o discurso, ao mesmo tempo que busca soluções conservadoras na prática, vem, portanto, desde os tempos do ABC. Vale notar que os trabalhadores perceberam isso e, mais tarde, quando voltaram para a porta das fábricas, os líderes sindicais foram vaiados.
Estado - Qual seria a função real desse discurso radical?
O presidente pode estar pensando lá na frente, na continuidade da sua vida política. Ele já se referiu a um programa internacional de apoio à África. Isso permitiria a ele continuar no primeiro plano da cena política e voltar como candidato em 2014. Voltaria não como ex-líder sindical ou personalidade de projeção nacional, mas sim como figura internacional.
Estado - Nem a aproximação com países africanos trouxe vantagens?
Em termos econômicos não houve vantagem. Em termos políticos, acho que foi pior para a democracia: o governo Lula tem se aproximado de ditaduras, regimes totalitários, discricionais. Mesmo sem querer, acaba apoiando esses regimes. Como é possível falar em direitos humanos no Brasil e não se referir às atrocidades cometidas pelo governo do Sudão, um governo genocida? É preciso ter coerência. No fundo, estamos assistindo a uma tentativa de terceiro-mundismo em pleno século 21. É o mesmo que vestir uma roupa inadequada para a ocasião, ou velha demais.
Estado - O discurso presidencial dá a impressão de que o Brasil ficou mais independente.
Ninguém quer que o País volte ao passado, à política de alinhamento automático com os Estados Unidos. Não somos mais assim. Mas é bom lembrar que essa política não começou com os discursos do Lula. O não-alinhamento automático existe desde o governo do general Ernesto Geisel, quando o ministro Azeredo da Silveira conduzia a política externa brasileira. Era o tempo do chamado pragmatismo responsável, que levou ao acordo nuclear entre Brasil e Alemanha, ao reconhecimento de Angola. Foi uma política de maioridade, muito saudável, que os governos seguintes mantiveram, com maior ou menor intensidade.
Estado - O PT influencia o discurso presidencial?
Sim. O PT ainda não fez uma crítica do desastre que foi o socialismo, a grande utopia do século 20. Embora difícil, é preciso enfrentar essa discussão, acabar com a visão maniqueísta da história e construir formas capitalistas alternativas.
Estado - Como viu a recente declaração presidencial de que a crise econômica mundial foi causada por "gente branca, de olhos azuis"?
Vi como uma enorme bobagem, uma frase infeliz. Isso faz parte das concessões feitas para a galeria, para receber aplausos, ao mesmo tempo que mantém em curso a política econômica conservadora.
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