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Argentina deixa de ser a terra prometida

Por Agencia Estado
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Em apenas duas gerações, a Argentina deixou de ser a terra prometida de 150 anos atrás, quando começou a atrair grandes levas de imigrantes, pricipalmente espanhóis e italianos, que chegaram a constituir 30% de sua população. Nos dois últimos anos, 150 mil argentinos, dos milhares que saíram da Argentina por vários motivos, inclusive turismo, não voltaram mais. Outros 30 mil imigrantes, principalmente peruanos, bolivianos e paraguaios, voltaram a seus países, "expulsos" pelo drama do desemprego e da pobreza, que já atinge metade dos 36 milhões de argentinos. "Sem querer dramatizar, os números mostram uma grande corrente migratória para outros países e, queiram ou não, trata-se de um êxodo, incentivado pelo choque entre o pessimismo sobre o futuro da Argentina e falta de confiança na própria capacidade de cada pessoa", diz Diego Melamed, jornalista e autor do livro "Irse" (ir embora), lançado há duas semanas em Buenos Aires. Em entrevista à Agência Estado, por telefone de Buenos Aires, Melamed conta que durante dois anos pesquisou e viajou por diferentes países para poder escrever sobre o drama dos argentinos, que sonham em manter a qualidade e padrão de vida que tinham antes do recrudecimento da crise econômica. No livro, o jornalista mostra como, por que e para onde os argentinos estão indo embora. Em 1852, a Argentina, era o único país na América Latina cuja população começava a ser constituída pela chegada maciça de imigrantes. "Na América, governar é povoar", era o lema de seus governantes. Anos depois, entre 1880 e 1905, entraram no país nada menos do que 2,83 milhões de imigrantes, ante uma população que não passava de 1,85 milhão. "Quando começou a Segunda Guerra, 30% do país era constituído de estrangeiros, uma proporção duas vezes maior que a mais alta alcançada pelos Estados Unidos", explica Melamed. Há dois anos, acrescenta o jornalista, a fantasia de ir embora começou a crescer. "Agora, a falta de esperança no futuro resume o pessimismo da população, principalmente dos jovens." Em agosto de 2000, um estudo da Universidade de Buenos Aires mostrava que 43% dos jovens com idade universitária queriam ir embora do país. Quatro meses depois, outra pesquisa, do Instituto D´Alessio, indicava que 76% dos jovens sonhavam deixar a Argentina e 38% dos pais de família aconselhavam seus filhos a irem embora. "Estamos em um país onde, pela primeira vez, a população intui que a qualidade de vida das próximas gerações não irá melhorar. Ao contrário, acredita que vai piorar", acrescenta Melamed. Sonho do primeiro mundo A fantasia dos argentinos, conta o jornalista, "é ir para o Primeiro Mundo, não só por causa da nacionalidade de seus avós, no caso da Espanha, mas mais que tudo por questões econômicas". No ano passado, o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) constatou que, dos milhares de argentinos que saíram por alguma razão pelos principais portos migratórios da Grande Buenos Aires, 62% foram para países do Mercosul e o Chile, 14% decidiram viajar para a Europa, 13% escolheram os Estados Unidos e o Canadá, 10% optaram por países da América Latina e o Caribe e 1% se dirigiram para outros países. De acordo com levantamentos feitos por Melamed para seu livro, 38% dos argentinos que pretendem deixar a Argentina preferem a Espanha, justamente pela ligação que seus avós têm com esse país. Outros 32% preferem a Itália (16%) e os Estados Unidos (16%) por questões econômicas (trabalho). Já 5% optariam pelo Brasil. Mas, desta vez, por razões de qualidade de vida. No ano passado, o Consulado da Espanha em Buenos Aires concedeu a nacionalidade espanhola a 25,44 mil argentinos, 150% a mais do que em 1998. Desde então, os argentinos nacionalizados espanhóis já somam 75 mil. Mas a vontade de migrar para outros países não pára aí. O Chile, México e Austrália, atraem 9% dos argentinos (3% cada um desses países). Já a Alemanha, a França e o Canadá são escolhidos por 6% (2% cada um). Nem mesmo a Polônia escapa da fantasia argentina de deixar o país, e Israel, apesar do conflito no Oriente Médio, é outro destino escolhido, principalmente por judeus argentinos. Nem a guerra assusta Em 2000, diz Melamed, descendente de judeus, 1,2 mil judeus argentinos foram para a região do conflito árabe-israelense. Em 2001, esse número subiu para 1,5 mil e, este ano, espera-se entre 5 mil e 6 mil judeus argentinos indo para Israel. "É um dilema, já que no Oriente Médio não se sabe quando chegará a paz, mas também não se sabe quando a Argentina começará a se recuperar", diz o jornalista. A dúvida, acrescenta ele, é qual desse dois conflitos vais se resolver primeiro. Hoje, estima-se que em Israel vivam mais de 70 mil judeus argentinos. Quase que imitando a seus ancestrais, os judeus argentinos também estão migrando para outras regiões, como Miami. A Federação Judia da Grande Miami acredita que, no último ano, tenham chegado à Flórida cerca de 2 mil judeus argentinos, muitos dos quais estão na sombra da ilegalidade. De acordo com Melamed, os esforços da comunidade internacional israelense para resgatar judeus da crise argentina hoje são tão ou mais intensos do que no início da década de 90, quando se montou a Operação Êxodo, que levou 1 milhão de judeus russos para Israel, a um custo de US$ 400 milhões. Estima-se que, nos EUA, estejam morando pelo menos 25 mil judeus argentinos. Esse êxodo de judeus fez com que a comunidade judaica na Argentina tenha caído de mais de 350 mil, no início dos anos 60, para menos de 200 mil hoje. Mesmo assim, continua sendo a sétima maior do mundo. Imigrantes fogem aos seus países Desesperados com a crítica situação do país, imigrantes de países latino-americanos que haviam indo em busca da moeda forte criada pelo ex-ministro Domingo Cavallo também começam a deixar a Argentina. Desde o início deste ano, cifras extraoficiais dos consulados mostram que pelo menos 30 mil estrangeiros residentes (ilegais ou não) retornaram aos seus países. Dados do Centro de Residentes Paraguaios, por exemplo, indicam que cerca de 10 mil paraguaios retornaram desde os primeiros dias de dezembro. A Embaixada da Bolívia acredita que pelo menos 15 mil bolivianos saíram da Argentina desde a desvalorização do peso, em janeiro. Os peruanos também decidiram voltar. Embora o Consulado desse país não tenha números concretos, estima-se que sejam pelo menos 5 mil os que deixaram a Argentina nos últimos meses. Brasil No Consulado do Brasil em Buenos Aires, por exemplo, aumentou o registro de retorno de brasileiros casados com argentinas ou brasileiras casadas com argentinos. Das duas a três famílias que voltavam ao Brasil por semestre, o retorno passou a ser por mês, de acordo com o embaixador Adhemar Bahadian, cônsul do Brasil em Buenos Aires. "É difícil detectar uma migração maciça para o Brasil, até porque os argentinos não precisam de visto para entrar em território brasileiro e têm 90 dias como turistas, com direito a prorrogação por mais 90 dias", explica o embaixador. O problema, acrescenta Bahadian, é saber quantos ficam e quantos voltam. O embaixador diz que, a rigor, um eventual fenômeno de êxodo de argentinos para o Brasil só será detectado daqui a alguns meses, já que a crise mais dramática no país se verificou a partir da renúncia de Fernando de la Rúa, em dezembro do ano passado. No Consulado britânico, o número de consultas, em sua maioria para obter residência, visto de estudante ou de trabalho, aumentou 300% nos primeiros meses do ano. Já no Consulado da França essas consultas dobraram. No do México, de junho do ano passado a hoje, as consultas passaram para uma média diária de 40, enquanto que no chileno, de cinco a dez consultas mensais passaram para mais de 50. Nasce outro país Depois de duas gerações a Argentina é outro país. "A realidade vai por um lado e o argentino por outro", resume Roberto Tito Cossa, dramaturgo, com mais de 20 peças de teatro. Para ele, é inédito que, na Argentina, a metade da população seja pobre. "Em 1970, éramos 22 milhões, dos quais 2 milhões eram pobres. Hoje, somos 36 milhões e há 14 milhões são pobres. Isso quer dizer que, dos 14 milhões de argentinos de uma nova geração, 12 milhões são pobres. Trata-se de uma realidade cruel", diz Tito Cossa. Pior, o desemprego afeta 25% dos argentinos e dois de cada três jovens não vê nenhum futuro no país. "Ir embora parece uma solução, mas é deprimente", lamenta Melamed. O também escritor Ernesto Schoo acredita o processo doloroso e triste que vivem hoje os argentinos servirá para criar um outro país. Em recente entrevista ao jornal "La Nación", Schoo diz ter certeza que a gravíssoma crise servirá para o surgimento de uma outra Argentina, muito mais séria, honesta, trabalhadora e ordenada Ainda de acordo com dados do Indec, o IBGE argentino, nos últimos seis meses cerca de 550 mil pessoas da classe média na região metropolitana de Buenos Aires se somaram à linha da pobreza. O Indec constatou que, em março, 39,7% dos habitantes da Capital e a Grande Buenos Aires já estão na linha da pobreza. Como a população nessas duas áreas soma aproximadamente 12,5 milhões, e possível dizer que quase 5 milhões de argentinos nessa região são pobres, dos quais 1,2 milhão indigentes. Isto é, cerca de 10% dos pobres em Buenos Aires e na Grande Buenos Aires sequer têm recursos para comprar uma cesta mínima de alimentos. Um dos mistérios indecifráveis dessa realidade é esse. Como um país tão rico há menos de 150 anos chegou a esse extremo. "Temos um hardware maravilhoso, que tem recursos naturais intactos e bons recursos humanos, com excelente nível cultural, uma sociedade pacífica que aspira melhorar a qualidade de vida. No entanto, o software falha porque temos uma Justiça que não funciona, políticos corruptos e clientelistas e muita impunidade", diz Marcos Aguinis, psicanalista e escritor que escreveu um delicioso retrato dos argentinos em um livro com um curioso e contraditório título: "O atroz encanto de ser argentino." Leia o especial

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