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Autocrítica é um bom começo

A investigação criminal pelo Fisco é desvio de função. Se constatados indícios de crime, cabe só representar ao MP

Por Everardo Maciel
Atualização:

No contexto de episódios recentes de vazamentos de informações protegidas por sigilo fiscal, cabe lembrar que, desde 1992, excessos na solicitação de informações protegidas por sigilo bancário motivaram contribuintes a ingressar com ações judiciais contrárias à nunca contestada faculdade de acesso do Fisco, cujo desfecho, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), lhes foi favorável.

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Quando da instituição da CPMF, em 1996, reabriu-se a possibilidade de acesso do Fisco às informações bancárias para dar efetividade na administração daquela contribuição. Vedou-se, todavia, o uso das informações para constituição de crédito relativo a outros tributos. Dados da CPMF evidenciaram, contudo, vultosas movimentações financeiras de empresas inativas e de pessoas físicas isentas. A divulgação desses escandalosos contrastes, em caráter agregado e com rigorosa observância do sigilo individual dos contribuintes, motivou o Congresso a revogar aquela restrição (Lei n.º 10.174, de 2001).

A medida se inscreveu no âmbito de outras modificações nas normas sobre sigilo: a Lei Complementar n.º 104, que estabeleceu novas exceções e possibilidades de compartilhamento do sigilo fiscal, e a Lei Complementar n.º 105, que disciplinou de forma cuidadosa o acesso ao sigilo bancário, cuja constitucionalidade findou referendada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2016.

As leis complementares foram sancionadas em 10/1/2001 juntamente com a edição do Decreto n.º 3.724, que, entre outras providências, condicionava o procedimento de fiscalização à expedição de mandado de procedimento fiscal, especificava as hipóteses e procedimentos relativos à requisição de informações bancárias e previa regras para proteção do sigilo, inclusive qualificando como infração o acesso imotivado.

Essas normas se associavam a providências editadas em anos anteriores que dispunham sobre a gestão de sistemas de informação e perfis de acesso, compartilhamento de informações protegidas por sigilo fiscal e transferência de informações cadastrais, bem como à alteração, em 2000, do artigo 325 do Código Penal, que equiparou ao crime de violação de sigilo a cessão de senhas e o acesso indevido a sistemas protegidos por sigilo. Cuidava-se, pois, de dar concretude ao poder-dever de fiscalizar sem transgressões à imagem e à privacidade dos contribuintes.

Os vazamentos recentes, todavia, revelaram a vulnerabilidade do modelo.

Pôde-se perceber que as regras originais sofreram alteração para pior e os critérios de seleção de contribuintes não evoluíram. Além disso, à ação fiscal foi acrescentada a pretensão de investigação criminal.

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A extinção do mandado de procedimento fiscal foi um retrocesso. O Estado demitiu de si um valioso instrumento de controle da ação fiscal e o contribuinte tornou-se mais vulnerável.

Os critérios de seleção de contribuintes ainda tomam por base padrões extraídos das declarações, em contraste com a exuberante evolução da inteligência artificial. Especial destaque para a inclusão sistemática, na seleção dos contribuintes, das denominadas Pessoas Politicamente Expostas (PPE), em decorrência de Convenção da ONU, concebida para, sem sucesso, fiscalizar governantes corruptos de republiquetas. A adesão do Brasil à convenção transformou o exercício da função pública, em tese honroso, em prática aviltante. É evidente que existem governantes corruptos, mas o mero exercício da função pública não torna suspeito seu ocupante. De resto, não cabe acolher o conceito de PPE na seleção de contribuintes, pois a Constituição veda expressamente tratamento desigual entre contribuintes, em razão da ocupação profissional ou função por eles exercida.

A investigação criminal pelo Fisco é desvio de função. No curso de procedimento de fiscalização, cabe, quando constatados indícios de crime contra a ordem tributária, tão somente representar ao Ministério Público.

“Leva-se muito mais tempo para construir confiança do que para perdê-la”, lembra Franklin Foer (O mundo que não pensa). Um bom caminho para restabelecê-la é a autocrítica.

*CONSULTOR TRIBUTÁRIO, FOI SECRETÁRIO DA RECEITA FEDERAL (1995-2002)

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